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Humorista, membro do coletivo português Gato Fedorento. É autor de “Boca do Inferno”.

A superioridade moral da inferioridade interpretativa

É possível a gente se referir em tom de brincadeira a certos aspectos trágicos da vida sem minimizar essa mesma tragédia

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Eu estava numa festa a contar a um amigo uma piada que tinha lido. "Um dia, no Memorial do Holocausto, em Jerusalém, um visitante perguntou a um dos funcionários: qual foi o documento mais devastador que encontrou aqui? Ele respondeu: o recibo do meu salário."

Uma senhora que também estava na festa aproximou-se e disse: "Desculpem, não pude deixar de ouvir. Essa piada é muito ofensiva. É de uma grande insensibilidade sugerir que o salário de alguém, por mais baixo que seja, é a coisa mais devastadora que se encontra no Memorial do Holocausto. O genocídio de milhões de seres humanos não pode ser minimizado dessa forma."

Ilustração de Luiza Pannunzio para coluna de Ricardo Araújo Pereira - Folhapress

Nem eu nem o meu amigo tivemos hipótese de responder, porque entretanto o anfitrião veio convidar todos os convivas para um jogo de Monopoly.

Várias pessoas se sentaram para jogar, incluindo a senhora que nos tinha repreendido, mas eu optei por ficar de fora, a ver.

Quando o jogo ia a meio, eu resolvi intervir, dizendo: "Desculpem, não pude deixar de ver. O capitalismo tem características extremamente nocivas. Se não houver regulação, transforma-se na lei da selva. Milhares de famílias sofrem, todos os anos, por causa daquilo que vocês estão a tentar fazer uns aos outros à volta desse tabuleiro. O açambarcamento de recursos, que leva os outros à falência, é um dos maiores flagelos da nossa sociedade, e conduz à pobreza, ao desemprego e até ao suicídio. Reparei, horrorizado, que ainda há pouco saiu a carta que livra o jogador da prisão. Meu deus, querem exemplo mais acabado da situação de privilégio indevido em que vivem impunemente certas pessoas, que se acham acima do Estado Democrático de Direito?"

A senhora que minutos antes tinha assinalado a insensibilidade da piada perguntou: "Quem é esse idiota? Você não percebe que a acção de um jogo de tabuleiro decorre num plano de realidade diferente? Que aqui o dinheiro é de faz de conta e ninguém acaba mesmo na falência?"

Então eu disse: "Como assim? Quer dizer que é possível a gente referir, numa brincadeira, certos aspectos trágicos da vida real sem minimizar essa mesma tragédia, nem desrespeitar o sofrimento dos outros?" "Claro!", disse a senhora. E todo o mundo se levantou e aplaudiu durante 5 minutos seguidos a linda parábola que eu tinha acabado de compor.

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