Ricardo Araújo Pereira

Humorista, membro do coletivo português Gato Fedorento. É autor de “Boca do Inferno”.

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Ricardo Araújo Pereira
Descrição de chapéu
Portugal

Ora pois não

O desencontro das línguas por uma elipse

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Sempre que podemos e nos encontramos no mesmo continente, Gregório Duvivier e eu fazemos um espetáculo sobre a língua portuguesa. Já levamos esse espetáculo ao Rio de Janeiro, a São Paulo, a Lisboa e ao Porto. Várias vezes.

Em todos esses lugares, para surpresa nossa, portugueses e brasileiros enchem a plateia com entusiasmo para ouvir falar de gramática. Gregório e eu examinamos os encontros e desencontros do português europeu e do português brasileiro durante uma hora. Então, muita gente toma o microfone para contar as suas próprias aventuras linguísticas.

Uma brasileira residente em Portugal contou um pequeno sobressalto que viveu. Ia mudar de casa e um amigo português perguntou-lhe: "Sempre vais mudar de casa?". Em Portugal, a formulação "sempre vais?" significa "confirmas que vais?". Mas, aos ouvidos brasileiros, a pergunta soa a exasperação: "vais estar sempre a mudar de casa?".

no desenho de Luiza Pannunzio há 4 x um homem branco vestindo camisa social, calça, tenis, relógio e telefone, este aparelho tão indispensável do nosso tempo. O primeiro com o telefone próximo ao rosto e o braço esquerdo apoiando o cotovelo. A frase "pois não!" aos teus pés. O segundo, com o celular afastado do corpo, segurado pela mão direita como quem conversa por vídeo e a frase "pois não." acompanha essa distância. O terceiro com o celular na mão direita e o corpo curvado, cansado pra frente - a frase "pois não?" ao lado de suas pernas. E o quarto com o telefone sendo segurado pelas duas mãos, próximo do rosto, barriga pra frente, parecendo cômoda a posição. E nas costas a frase "pois não..." com reticências.
Ilustração de Luiza Pannunzio para coluna de Ricardo Araujo Pereira de 10 de setembro de 2023 - Folhapress

Nada que não se consiga esclarecer rapidamente, mas o desentendimento tem sempre graça. Outra brasileira contou a história de uma amiga que tinha visitado Portugal e, de regresso ao Brasil, estava com medo de ser considerada xenófoba, porque tinha encontrado provas da burrice que as anedotas de português costumam referir.

Ela tinha fotografado uma placa que dizia: "Proibido acampar no camping". E perguntou à amiga: "Você não acha um pouco estúpido que não se possa acampar no camping? Para que é que os portugueses constroem um camping se depois é proibido acampar no camping?".

A nossa espectadora perguntou à amiga: "Você já mostrou essa foto a alguém?". "Não, por quê?" "Porque o que está escrito nessa placa é: ‘proibido acampar’. E por baixo diz, em língua inglesa: ‘no camping’."

Um ponto em que o português de Portugal e do Brasil divergem claramente é no "pois não". No Brasil, "pois não" significa sim. É uma elipse da expressão "pois não havia de".

Além disso, alguns brasileiros atendem o telefone dizendo: "pois não?". No Brasil, "pois não" é o início de uma conversa. Em Portugal, é o fim, como no diálogo que aqui se segue.

"Sinto que não queres falar comigo." "Pois não." Talvez em Portugal devêssemos adotar o "pois não" como sinônimo de sim. Alguém perguntaria: "Posso acampar no camping?" E nós diríamos: "pois não".

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