Humorista, membro do coletivo português Gato Fedorento. É autor de “Boca do Inferno”.
Aguardar julgamento em liberdade é diferente de pagar para cometer crimes
Ler notícias era um hábito antigamente e fui me informar sobre o caso Daniel Alves para ver se a Justiça da Espanha é medieval
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A notícia sobressaltou todo o mundo e gerou justificadíssima indignação: o jogador Daniel Alves estuprou uma mulher na Espanha, mas, depois de ter pago um milhão de euros, saiu em liberdade.
Unanimemente, o caso foi considerado um escândalo. Estuprar custava um milhão de euros; os ricos podiam estuprar impunemente; contanto que se tivesse dinheiro era possível comprar a liberdade.
Pessoalmente, tive dúvidas. Não em relação à possibilidade de cometer crimes a troco de dinheiro —isso também me pareceu abominável. O problema é que eu vivo em Portugal, que fica mesmo ao lado da Espanha, e nunca tinha reparado que os meus vizinhos tivessem um sistema de justiça medieval.
Durante todo este tempo, tinha-me escapado que na Espanha as mulheres vivessem no perigo constante de se cruzarem com um estuprador rico, a quem bastava compensar o Estado espanhol com uma quantia razoável para poderem cometer crimes à vontade.
Por isso, fui ler as notícias. Era um hábito que existia antigamente: a gente pegava no jornal, lia o título de uma notícia, e depois continuava lendo, buscando um esclarecimento completo. Ler apenas duas palavras antes de formular uma opinião definitiva dava mau resultado.
E foi então que apurei que o sistema de justiça espanhol funciona do seguinte modo (preparem-se, porque é surpreendente): os criminosos vão para a prisão quando são condenados. São idiossincrasias espanholas muito estranhas. Mais: a condenação só existe quando a sentença transita em julgado. Antes da sentença final, o cidadão é, para todos os efeitos, inocente.
Parece que é um preceito que serve para que ninguém possa ser preso arbitrariamente. Enquanto aguarda pela sentença final, o cidadão pode ficar em liberdade (uma vez que, como ficou dito, é inocente até provado o contrário), embora lhe possam ser impostas medidas de coação. Essas medidas servem para garantir que o réu não foge e é mesmo julgado em tribunal.
Consoante a gravidade do crime de que é acusado, essas medidas podem ir da mera notificação do tribunal quando vai viajar até a prisão preventiva.
No entanto, também há regras para a aplicação da prisão preventiva, para impedir que os cidadãos que ainda não foram condenados cumpram uma pena que não lhes foi atribuída. É o caso de Daniel Alves, que interpôs recurso da decisão da primeira instância e tem direito a aguardar o novo julgamento em liberdade, mediante a entrega do seu passaporte e do pagamento de uma fiança.
É ligeiramente diferente de pagar para cometer crimes impunemente. Afinal não somos todos moralmente superiores aos tribunais espanhóis. Mas tenho a certeza de que a nossa superioridade moral, que é evidente, se revelará já para a semana, na sequência da leitura precipitada de outra notícia qualquer.
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