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Professor catedrático convidado na NOVA School of Business and Economics, em Portugal. Nomeado Young Global Leader pelo Fórum Econômico Mundial, em 2017

Devemos boicotar a Copa do Mundo?

Nunca um campeonato foi tão alvejado por ambientalistas e defensores dos direitos humanos

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Talvez o melhor antídoto contra a jatância bolsonarista pós-eleitoral seja a Copa do Mundo.

O jogo de abertura está agendado para 20 de novembro, poucas semanas depois da eleição. As camisas verde-amarelas que simbolizam uma ideologia irão se diluir no mar de torcedores da seleção brasileira.

Mas a pergunta que muitos, com legitimidade, farão é: deveremos boicotar a Copa? Nunca um campeonato do mundo foi tão alvejado por ambientalistas e defensores dos direitos humanos.

Vista geral do estádio de Lusail, que vai receber a final da Copa do Mundo deste ano, no Qatar - Ibraheem Al Omari-9.set.22/Reuters

O Qatar é um regime feudal autoritário, governado por uma família tribal que impõe um sistema social que viola a dignidade de mulheres e imigrantes pobres (sistema kafala). São inúmeras as suspeitas de corrupção na atribuição da Copa ao país.

Um relatório oficial da FIFA concluiu que, para ganhar a eleição, o país chegou aos limites das regras de conduta. Para construir os estádios e toda a infraestruturas de apoio, os imigrantes foram sujeitos a um regime escravocrata com longas horas de trabalho mal remunerado e debaixo de temperaturas desérticas, apropriadas para hipertermófilos, mas não para seres humanos. Milhares morreram. O The Guardian estimou serem 6.500 pessoas, mas os registros públicos do Qatar para esta categoria de trabalhador (a maioria imigrante vinda da Ásia do Sul) são tão precários quanto o número de mortes por Covid na China ou na Coreia do Norte.

As ambições das autoridades locais para que os estádios fossem ecológicos e a Copa fosse a primeira "net zero" (neutralidade carbónica) da história só serão concretizáveis com maquiagem na contabilidade das emissões.

Mas o que significa boicotar a Copa? Quando pensamos na Copa de 1978, nos lembramos dos históricos jogos contra a arquirrival Argentina (0 a 0) e contra a Itália (o Brasil ganhou de virada, por 2 a 1, ficando com o 3º lugar). Mas o evento foi disputado na Argentina, em plena ditadura militar. Perto do estádio Monumental, palco da final, vítimas da ditadura foram torturadas na Escola Mecânica da Armada. A nossa memória é seletiva.

A última Copa, a de 2018, foi disputada na Rússia, poucos anos depois de Putin ter esmagado os protestos pró-democracia de 2013-2014 na Ucrânia e de invadido e anexado a Crimeia em 2014. A Rússia era tão autocrática em 2018 quanto é hoje. Por que não boicotamos?

O Qatar ocupa um constrangedor 114º lugar (entre 167 países) no Democracy Index 2021 da The Economist. Mas o Egito é o 132º da mesma lista. Vamos boicotar a COP27 a ser realizada na cidade egípcia de Sharm el-Sheikh em novembro deste ano? E vamos deixar de acompanhar o Paris Saint-Germain por ter sido comprado pelo Qatar Sports Investments, um fundo de investimentos vinculado ao governo do Qatar? É fácil ser ético, mas é muito difícil sê-lo sem incoerências.

Um boicote também pressupõe um determinismo ético que é sempre baseado em critérios que derivam de regulamentos pessoais e, por isso, dificilmente universalizáveis. A moralidade e a virtude –a distinção do certo e do errado– é contingente a experiências individuais subjetivas e a códigos culturais e religiosos específicos.

Mas deveremos, por isso, usar a dificuldade em sermos consistentes como subterfúgio para não sentirmos culpa a cada vez que ligamos a TV para assistirmos um jogo? Ou a parcialidade da ética?

Creio que continua a haver espaço para a indignação. Se a maioria dos jogadores contemporâneos se silenciam perante as deficiências éticas do mundo, preferindo firmar contratos que os obrigam ao eterno sorriso, o futebol brasileiro tem tradição de contestação.

Sócrates foi um ícone democrático, defendeu causas sociais e manteve voz ativa contra a ditadura. Paulo André foi um dos protagonistas do movimento Bom Senso F.C, que cobrava melhores condições no futebol brasileiro. Richarlison, atualmente no Tottenham, posicionou-se contra as queimadas no Pantanal e criticou práticas não científicas no combate à pandemia. O futebol não está fadado a ser monomaníaco.

No Qatar, a Confederação Brasileira de Futebol deveria permitir que os jogadores manifestem a sua indignação, caso o desejem. Dentro dos estádios, a censura da FIFA será ubíqua. Mas fora deles, nada deveria impedir os jogadores, ou a CBF, de prestarem homenagem a todos os trabalhadores mortos ou a manifestarem o seu apoio à sacralidade da democracia, tal como geralmente fazem contra o racismo. Por que parte dos prêmios de jogo não poderá ser canalizada para ONGs que apoiam os trabalhadores imigrantes, as famílias das vítimas, ou causas ambientais?

É naturalmente possível que algumas destas ações sejam táticas de relações públicas. Mas serão úteis. Servirão para nos relembrar que houve quem deu a vida para que houvesse a festa da Copa. E que os craques não são só aqueles que fazem gols.

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