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Escritor e jornalista, autor de “A Vida Futura” e “Viva a Língua Brasileira”.

O país dos hidrantes secos

Sistema antifogo em santuários cheios de peças insubstituíveis para quê?

Bombeiro em escombros do Museu Nacional, destruído por incêndio - Carl de Souza/AFP

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O hidrante seco é um símbolo do Brasil. Primo-irmão da privada seca, mais conhecida como penico, emblema do “país do futuro” em que metade da população não tem acesso a redes de esgoto, o baixinho notável conheceu mais um momento de brilho na noite de domingo.

Aliado do terrível fogo, o Grande Fogo Purificador que mora dentro das armas que levam seu nome, o hidrante seco —ou meia bomba, dá no mesmo— ajuda a limpar o mundo de toda frescura, 
toda sutileza, todo verniz civilizatório com suas relíquias, pesquisas, memórias e apego a coisas inúteis.

Implacável na busca da essência, o GFP reduz nossa confusa realidade ao que importa —primeiro ao esqueleto carbonizado, depois a cinza, a pó, de onde nos restará a tarefa de reconstruir um país livre de história e purgado de desvios humanistas.

Ou será coincidência que o meteorito do Bendegó tenha resistido ao holocausto enquanto dos artefatos toscos urdidos por povos incapazes de sobreviver ao progresso já não há bulhufas? Sobre qual pedra ergueremos o futuro?

Deus nos livre de hidrantes com água, santuários abarrotados de peças insubstituíveis com sistema antifogo, museus modernos e acolhedores frequentados por multidões, multidões que saem da escola sabendo ler o que está escrito nas plaquetas de identificação das peças.

Soldadinho do fogo impalpável, seu anjo de ferro entre os mortais, o hidrante seco é de sublime inutilidade, como o gesto estético que funda toda arte, mas nela ancora uma função superior: a de nos negar a menor ilusão de luta. Não é pouco. 

Vejamos. Talvez não houvesse mesmo nada a fazer aquela noite. A precária força humana chega a ser ridícula quando se defronta com tantas décadas de descaso acumulado num só lugar: desinteresse, desinvestimento, fios expostos, tábuas rangendo, escadas bambas, salas fechadas, público arisco.

Como impedir que arda o cipoal ressequido de culpas entrecruzadas entre administrações universitárias, gerações de governantes de mão fechada e cabecinha também, público indiferente? Mas, ah, como teríamos lutado mesmo assim! 

Isto é, se o hidrante seco deixasse. Mas não deixou, nunca deixa. É uma obra-prima. Uma peça de Duchamp. Um dedo médio vermelho erguido na esquina, convidando todo mundo a nele pousar 
o traseiro e relaxar.

Rendidos ao seu poder, bombeiros borboletearam inúteis ao redor da hecatombe e diante das câmeras de TV, coçando a cabeça. Alguns verteram lágrimas, mas estas, embora sinceras e hídricas, jamais teriam volume para inflar as mangueiras impotentes. Mandou-se buscar água, operação trabalhosa que leva tempo. E tempo é a matéria que o GFP queima primeiro, às gargalhadas.

Importamos a palavra “hidrante” dos EUA há um século. Os ingleses não gostam do original “hydrant”, dizem que não passa de um americanismo e que sua formação a partir do elemento grego 
“hydor” é irregular.

Pode ser, não convém discutir com o dicionário Oxford. Mas parece que no país de John Orr —bombeiro de Los Angeles que em 1991 foi preso e condenado como o piromaníaco responsável por 2.000 incêndios— hidrantes compensam a morfologia plebeia com o fato de que funcionam.

Com isso quero dizer o seguinte: jorram água! Sim, em catadupas. A menos que sejam forjadas aquelas fotos antigas, clichês jornalísticos de verão, em que crianças brincam risonhas diante de hidrantes abertos. Mas não, é claro que as fotos não são forjadas. Que país mais sem imaginação. 

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