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Escritor e jornalista, autor de “A Vida Futura” e “Viva a Língua Brasileira”.

Lockdown, blecaute etc.

Nossa anglofilia é meio jeca, mas o sujeito da língua é a multidão

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A palavra “lockdown” provoca controvérsia. Por que adotar um termo importado, enrolado e difícil para grande parte da população, se podemos chamar o confinamento obrigatório de... confinamento obrigatório?

Outras traduções têm sido propostas em nome do nacionalismo. Das criativas e sucintas, como tranca-rua, às sóbrias e extensas, como isolamento total.

Acho engraçado que os críticos de “lockdown” não deem um pio sobre, digamos, habeas corpus e déficit, que também são complicados e andam soltinhos por aí.

Seja como for, confesso que eu ficaria bem contente se a língua caminhasse para uma saída popular e bonachona como, sei lá, “trancadão”.

Por que não? Haveria o precedente de “blackout” (interrupção no fornecimento de energia elétrica), que reinou pela maior parte do século 20 na forma aportuguesada blecaute, até ser desbancado nos anos 1990 pelo apagão.

Acontece que não me cabe decidir tais coisas. Como, em condições normais, não cabe a ninguém identificável. O sujeito da língua é sempre uma multidão.

Por trás da vitória de apagão pode estar outro termo importado: sua matriz provável é o espanhol “apagón”. Mas que o resultado soa mais brasileiro, soa.

Contudo, tentar repetir a experiência em laboratório equivale a ordenar ao mar agitado que vire piscina. Não é que os estrangeirismos sejam uma força indomável. A língua é que é.

Eu também não gosto da falta de altivez cultural expressa em nosso fascínio por adotar palavras do inglês —muitas vezes sem nenhuma necessidade prática reconhecível, apenas como ornamento.

O hábito, antigo no país, é do tipo que faz a boca torta —mas nem tanto, pois a pronúncia em geral se abrasileira, esparramada em vogais, mesmo quando a grafia original resiste.

Com exceção dos descendentes de Policarpo Quaresma, o patriota maluco criado pelo escritor Lima Barreto, quem implicaria hoje com palavras correntes como show, marketing, shopping, funk, designer, selfie, self-service?

E, se tão bem acolhemos esses espécimes, por que não ir além e adotar também a sale, o target, o share, o cross-dresser, o bottom line, o coffee break, a blogueira fitness?

A anglofilia vocabular aguda que acomete setores variados da população, sobretudo de classe média, espalha-se com especial virulência nos jargões corporativo, financeiro, tecnológico e de moda.

O efeito é meio jeca, vamos combinar (“let’s face it”). No entanto, não há muito que possa ser feito, com exceção de educar o povo e esperar que, daqui a meio século, algo mude nessa relação com nossa própria imagem no espelho do idioma.

Autoestima linguística não se fabrica por decreto, demanda um tempo de amadurecimento cultural que se mede em gerações. Contudo, é a única substância de eficácia comprovada no tratamento dos excessos estrangeiristas.

A boa notícia é que, ao contrário do que muita gente imagina, anglofilia vocabular aguda não mata ninguém. Línguas se alimentam umas das outras desde que o mundo é mundo.

Se houvesse risco, o português de Machado de Assis não teria sobrevivido à avalanche de palavras que o francês, idioma imperialista do momento, fez desabar sobre nós no século 19. “Avalanche”, aliás, era uma delas.

Quem quiser combater os verdadeiros inimigos da língua pode começar procurando no alto escalão de um governo de semianalfabetos que nunca leram um livro e mal conseguem ir além de grunhidos e palavrões.

O “lockdown” é inocente.

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