Siga a folha

Escritor e jornalista, autor de “A Vida Futura” e “Viva a Língua Brasileira”.

Tolerância zero à 'manualite'

Chamar de erro o uso expandido de 'através' revela pouco conhecimento

Continue lendo com acesso ilimitado.
Aproveite esta oferta especial:

Oferta Exclusiva

6 meses por R$ 1,90/mês

SOMENTE ESSA SEMANA

ASSINE A FOLHA

Cancele quando quiser

Notícias no momento em que acontecem, newsletters exclusivas e mais de 200 colunas e blogs.
Apoie o jornalismo profissional.

"Manualite" é uma palavra que acabo de inventar para designar um fenômeno antigo e, infelizmente, mais vivo do que nunca: a doença que acomete o ensino da língua quando filtrado pela visão estreita de grande parte dos manuais de redação.

Um caso exemplar é o da condenação do uso do advérbio "através" em sentido figurado, metafórico, significando "por meio de".

Agarrados ao pé da letra —um de seus traços mais marcantes—, os adeptos da manualite acham errado que se diga que uma pessoa conheceu outra através de uma terceira.

Ou seja, consideram errado dizer o que dizem quase todos os brasileiros, inclusive os muito cultos, há pelo menos um século.

"Se eu digo que conheci 'Carolina através de Ana', posso passar a impressão, especialmente para os mais atentos aos fenômenos linguísticos, de que Ana é translúcida", lê-se num desses tira-dúvidas.

O argumento da translucidez associada ao uso expandido de através é típico. Na vida real, é claro que a frase "conheci Carolina através de Ana" só seria interpretada de tal forma por quem tivesse graves problemas mentais.

A manualite literalista se disfarça —mal— de preocupação com a clareza. Na verdade, ela é que provoca confusão em pontos que a dinâmica da língua, com sua tendência inata à expansão metafórica, já resolveu faz tempo.

"Aliás, dela não se dizia nada, com receio de que mesmo o menor comentário vazasse até o presidente do banco através de sua bem montada rede de puxa-sacos", escreveu Sérgio Sant'Anna no romance "Amazona", de 1986.

"Que ninguém se engane, só consigo a simplicidade através de muito trabalho", escreveu Clarice Lispector na novela "A Hora da Estrela", de 1977.

Tudo isso é próximo demais do presente ignaro? Que tal o deputado Nelson Carneiro discursando na Câmara em 1962? "O III Exército, através da palavra do seu comandante, ameaça o Congresso na sua liberdade de deliberação."

Talvez seja insuficiente. O literalista que dormita no fundo de cada um de nós exige um remédio ainda mais forte. Como o do jornal Correio da Manhã saudando o aviador Italo Balbo, ministro de Mussolini, que pousou no Rio em 1931:

"É mais uma vez o prestígio incontrolável da alma latina que se afirma no Universo, através do valor secular do povo italiano."

Todos esses empregos de "através" são condenáveis segundo a manualite. São também ocorrências que provam a consagração do "através" metafórico na norma culta brasileira.

Não adotar tal uso, ou qualquer outro, é direito de todo falante. Proclamá-lo um "erro", não. Ninguém está imune à doutrinação da manualite, mas é preciso contextualizá-la. Seu dogmatismo deriva do fato de saber menos —não mais— sobre a língua.

Para lutar contra o peso cultural de Sant'Anna, Clarice, Carneiro e o redator anônimo do Correio da Manhã de quase um século atrás, o que trazem para o ringue os propagadores do literalismo? Quais são suas credenciais pedagógicas, linguísticas, literárias?

Aí é que está. Falta-lhes autoridade para afirmar o que afirmam, condenar o que condenam. Conseguem de algum modo fazer isso porque o ambiente intelectual em que esse papo se dá é ralo, crivado de buracos por nossa educação capenga e nossos índices de leitura de chorar no meio-fio.

O pior é que a manualite reforça na cabeça de cada brasileiro a ideia errada de que falamos errado, de que não merecemos sequer a língua que mora em nossa boca. Temos sido tolerantes demais com ela.

Receba notícias da Folha

Cadastre-se e escolha quais newsletters gostaria de receber

Ativar newsletters

Relacionadas