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Escritor e jornalista, autor de “A Vida Futura” e “Viva a Língua Brasileira”.

Descrição de chapéu Eleições 2022

Uma mulher chamada Baderna

O que liga os golpistas de 2022 a uma encantadora bailarina do século 19

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A palavra "baderna" está em alta numa semana marcada por bloqueios golpistas nas estradas do país, promovidos por caminhoneiros sob o incentivo —no mínimo— omisso do presidente da República derrotado.

Por sorte, é uma palavra bonita e cheia de história. Há quem a considere um eufemismo para a desordem antidemocrática orquestrada por extremistas de direita, que encontraria melhor tradução na palavra "terrorismo".

Trata-se de meia verdade. O raciocínio deixa de levar em conta que a baderna —como a arruaça, a sedição, a balbúrdia, a indisciplina— não é incompatível com o cálculo frio das piores intenções.

Baderneiros golpistas fecham trecho de rodovia em Santa Catarina contra a eleição legítima do presidente Lula - Divulgação Polícia Rodoviária

Verdade que a nossa baderna nasceu com ares mais boêmios, mas nenhuma palavra é refém de sua origem. A etimologia deve considerar tanto o início quanto os rumos posteriores de um vocábulo.

Convém deixar claro que aqui estamos falando do brasileirismo baderna. A palavra portuguesa homônima, termo obscuro do vocabulário náutico ("arrebém delgado para fixar os colhedores ao apertar da enxárcia", segundo o dicionário Priberam), não tem nada a ver com isso.

A baderna brasileira ("situação em que reina a desordem, confusão, bagunça", ensina o Houaiss) nasceu do nome próprio de uma bailarina italiana que fez grande sucesso nos palcos da corte e de outras grandes cidades do país no século 19.

Além de bailarina do primeiro time, a bela Maria Baderna (1828-1892) era, segundo todos os relatos, uma mulher e tanto. Ex-estrela do Scala de Milão, veio para o Brasil com seu pai, ambos apoiadores do revolucionário republicano Giuseppe Mazzini, depois que este foi derrotado pelos monarquistas em 1848.

Seu biógrafo, o italiano Silverio Corvisieri, não esconde o encanto pela personagem. O livro "A Bailarina de Dois Mundos" (Record, tradução de Eliana Aguiar) nos ajuda a compreender as paixões que Marietta provocava em seus fãs.

"Que mistério brasileiro se esconde atrás da transformação do sobrenome de uma graciosa estrela da dança em uma palavra que, pouco a pouco, tornou-se sinônimo de termos inquietantes e múltiplos como desordem, conflito, orgia, pândega, pagode, confusão, pancadaria, cambada, súcia, extravagância?", pergunta-se Corvisieri.

É claro que ele mesmo responde. "Excessivamente liberal para o Brasil de D. Pedro II", a Baderna que sua biografia revela é uma artista corajosa que passou como um tufão por aquela sociedade tacanha e hipócrita, protagonizando escândalos em série.

Além do comportamento sexualmente livre, em contraste com os "hábitos sexofóbicos das mulheres brancas", Maria Baderna levou aos palcos da alta sociedade danças afro-brasileiras abominadas por uma elite escravocrata que se queria "europeia".

Ganhou inimigos ferozes e fãs exaltados, os badernas ou badernistas, grupos de rapazes com testosterona saindo pelos ouvidos e dados a promover arruaças para defender sua musa.

"Baderna e sobretudo os badernistas foram, pouco a pouco, identificados como símbolos e ao mesmo tempo protagonistas desse ‘caminho para a perdição’ que, segundo os bem-pensantes, não apenas punha em risco a saúde de seus filhos, mas ameaçava desagregar uma sociedade apoiada em rígidos pilares", escreve Corvisieri.

Grande Maria Baderna. Progressista até o fundo da alma, devotaria enorme desprezo aos baderneiros golpistas de 2022. Mas é bonito que, pelas artes da etimologia, a gente possa ver seu fantasma bailando livre sobre a fumaça dos pneus queimados.

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