Sérgio Rodrigues

Escritor e jornalista, autor de “A Vida Futura” e “Viva a Língua Brasileira”.

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Golpe de Estado e outros golpes

Fascínio da língua francesa pelo 'coup' enriqueceu nosso vocabulário

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Sem pensar muito, assim num golpe de vista, quais você diria que são as chances de um golpe de Estado prosperar no Brasil? Num golpe duro para a imagem internacional de um país que até há poucos anos era encarado com grande simpatia, essa é a pergunta que o mundo inteiro está se fazendo.

A infeliz berlinda em que a palavra golpe é posta dia sim e outro também pelo presidente da República e seus aliados golpistas, tanto os de dentro quanto os de fora das Forças Armadas, tem um único mérito — que é linguístico e certamente menor, mas já que estamos aqui...

Na esteira do francês, um idioma curiosamente viciado na criação de expressões com base na palavra "coup", golpe, nossa língua acabou por incorporar também um grande número dessas locuções. Algumas delas estão em uso desde o início da coluna e outras vêm a seguir.

Presidente Jair Bolsonaro fala gesticulando
Será que o candidato à reeleição, senhor de todos os golpes baixos, conseguirá dar o golpe de misericórdia na moribunda democracia brasileira? - Adriano Machado - 10.mai.22/Reuters

Será que o candidato à reeleição, senhor de todos os golpes baixos, conseguirá dar o golpe de misericórdia na moribunda democracia brasileira, dodói desde o golpe de ar que pegou pela proa em 2016?

Ou será que nossa democracia, num golpe de mestre ou quem sabe até de sorte (estamos precisando), vai contragolpear e mandar o golpista para a cadeia?

Ainda nem mencionei, por razões de incompatibilidade semântica, o golpe do baú dos arrivistas e o golpe de arco dos violinistas.

Palavra derivada do latim vulgar "colpus", sopapo, soco, o substantivo golpe existe em português desde o século 13. No entanto, a proliferação de seu uso em locuções decalcadas do francês​ entraria pelo século 20 incomodando os puristas.

Por alguma razão que nem Lacan explica, o fascínio francófono pelo "coup" é tão grande que levou a uma inflação de expressões com ele no meio, algumas das quais viemos a importar.

Nem todas. A maioria ficou por lá, dos três golpes ("les trois coups") que anunciam o início do espetáculo teatral ao idiomatismo "faire d’une pierre deux coups" —literalmente "fazer de uma pedra dois golpes" ou, em tradução menos burra, matar dois coelhos com uma cajadada.

O "Trésor de la Langue Française" não diz quando nasceu o "coup d’État", golpe de Estado, de grande sucesso na pauta de exportações da língua de Napoleão. Mas sabemos que em 1640 seu uso, sem tradução, já era registrado no inglês.

Sabemos também que, em 1938, o purista português Vasco Botelho de Amaral recomendava em seu "Dicionário de Dificuldades da Língua Portuguesa" evitar esse galicismo. Preferia em seu lugar "atentado governamental". O Houaiss registra outra fórmula purista: "subversão da ordem constitucional".

Claro que tudo isso conserva um interesse apenas histórico. A visão purista da língua podia ter boas intenções, mas sofreu um duríssimo golpe do tempo e se tornou matéria de comédia de boa qualidade.

Assim como as fórmulas "lance arrojado, resolução hábil" não substituíram o golpe de mestre e "vista de olhos" não matou o golpe de vista —para citar outras sugestões de Amaral, o caçador de galicismos—, o golpe de Estado está além da consagração em português.

Sua utilidade é indiscutível. Para surpresa de muitos de nós, que empolgados com alguns avanços sociais desde a redemocratização já julgávamos o Brasil menos atrasado e obscurantista do que ele é, descobrimos à nossa volta uma paisagem passadista e, infelizmente, familiar.

Aqui, sem usar a locução golpe de Estado, não existe vocabulário político que pare em pé. Que desgraça.

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