Escritor e jornalista, autor de “A Vida Futura” e “Viva a Língua Brasileira”.
A hipercorreção se trata de erro
A difusão desse uso pode levá-lo a ser normalizado um dia, mas é cedo
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No dia 26/2, sob o título "Defesa de Roberto Jefferson pede julgamento por lesão corporal e pede...", a Folha trouxe subsídios para municiar a velha discussão sobre erro gramatical.
Espera –erro gramatical? Há quem diga que ele "não existe", pois todo uso da língua seria legítimo. Espero demonstrar nesta coluna que o erro existe sim, embora nem sempre esteja onde fomos adestrados a acreditar que está.
Que tal procurá-lo, para variar, não em mensagens informais de pessoas de baixa escolaridade mas na peça formalíssima de 126 páginas em que os advogados de defesa de Roberto Jefferson pedem à Justiça Federal que o ex-presidente do PTB seja julgado por lesão corporal leve e não por tentativa de homicídio?
Entre outros usos bem esquisitos, infelizmente comuns no patoá que a sociedade brasileira se habituou a tolerar sob o nome de juridiquês, brilha um erro grandão, e em dose dupla, logo na frase que o jornal pôs em destaque sob aspinhas azuis:
"A ordem judicial de restabelecimento da prisão preventiva do ora Defendente não se trata de ato legal porque o ministro Alexandre de Moraes se trata de autoridade sabidamente incompetente para processar e julgar o sr. Roberto Jefferson".
Se ainda não achou o erro, leia de novo. Trata-se de um dos bons, capaz de nos fazer refletir sobre como o uso provoca erosão em velhas regras –mas não ainda, não tão depressa!– e, principalmente, sobre um fenômeno linguístico fascinante chamado hipercorreção.
Tempo de procura encerrado. Gabarito: a frase assinada pelos advogados João Pedro Barreto, Juliana David e Fernanda Carvalho usa a expressão "tratar-se de" com sujeito, como se ela fosse sinônimo de "ser".
"A ordem judicial... não se trata" quer dizer "a ordem judicial não é". E "Alexandre de Moraes se trata" deveria ser "Alexandre de Moraes é". Trata-se de um erro tão disseminado quanto gramaticalmente indiscutível.
"Tratar-se de" é uma fórmula cristalizada, fixa, que a depender da análise pode ser vista como impessoal ou como dotada de sujeito indeterminado (indicado pelo pronome "se").
Isso quer dizer que não é flexionada no plural (dizemos "trata-se de mentiras", nunca "tratam-se de mentiras") e que jamais se deve fazer dela um "ser" de paletó e gravata.
Por insegurança linguística, medo de errar, é comum a gente enfeitar a prosa, trocando por exemplo ter por possuir, estar por encontrar-se, qualquer coisa ou pessoa mencionada anteriormente por (aaargh!) "a mesma".
Esse caminho contrário a tudo o que soa natural, coloquial, leva com demasiada frequência à deselegância e a uma terra de ninguém em que rejeitamos a gramática introjetada por todo falante sem chegar à terra prometida da gramática normativa.
É o que se chama de hipercorreção. O nome pode sugerir algo muito correto, mas trata-se de uma pista falsa. Hipercorreção é erro, aquela busca afoita da correção que passa do ponto.
Como o uso é soberano e a norma culta, em última análise, ditada pelas camadas letradas da sociedade, é provável que em mais algum tempo sua alta incidência em matérias de imprensa, artigos acadêmicos e peças jurídicas leve esse "tratar-se de" com sujeito a ser normalizado. Assim caminham as línguas.
Mas é cedo. Enquanto isso não ocorre, convém tomar cuidado com um erro que, por fazer toda a coreografia da opressão gramatical sem sequer ter credenciais normativas para tanto, merece demais ser denunciado.
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