Siga a folha

Escritor e jornalista, autor de “A Vida Futura” e “Viva a Língua Brasileira”.

A distopia está no ar irrespirável

Breve história de uma palavra que nasceu do erro e nos acerta em cheio

Assinantes podem enviar 7 artigos por dia com acesso livre

ASSINE ou FAÇA LOGIN

Continue lendo com acesso ilimitado.
Aproveite esta oferta especial:

Oferta Exclusiva

6 meses por R$ 1,90/mês

SOMENTE ESSA SEMANA

ASSINE A FOLHA

Cancele quando quiser

Notícias no momento em que acontecem, newsletters exclusivas e mais de 200 colunas e blogs.
Apoie o jornalismo profissional.

Enquanto a maior cidade do país é sufocada pela fumaça de queimadas criminosas, como se fosse preciso acelerar o relógio de uma catástrofe ambiental já inevitável, a palavra "distopia" transborda da ficção e paira no ar —aliás, irrespirável.

Então era isso? Se os memes nos lembram que o céu de São Paulo se parece com o da Los Angeles distópica de "Blade Runner", talvez devêssemos ter prestado mais atenção no alerta? O futuro horroroso retratado por Ridley Scott no filme de 1982 já passou: estava situado em 2019.

Gênero de ficção em que se propõe como alerta um futuro imaginário opressivo, decadente ou ambos, a distopia costuma ser assim mesmo, meio apressadinha.

Cena de "Blade Runner: O Caçador de Androides" - Divulgação

Quando escreveu nos anos 1940 o romance que se tornaria uma matriz do gênero, George Orwell escolheu como título e localização temporal de seu pesadelo totalitário o ano de 1984.

No livro que foi o principal responsável pela revitalização da distopia em nossa paisagem cultural, "O Conto da Aia" (Rocco), de 1985, o futuro teocrático concebido por Margaret Atwood tem coordenadas cronológicas incertas, mas estima-se que se situe cerca de 20 anos atrás.

Se pensarmos bem, só poderia ser assim. Ainda que os escritores fossem profetas juramentados, o que obviamente não são, faria sentido antecipar o futuro desgracento antevisto em suas fantasias, a fim de dar à humanidade tempo para corrigir a rota e evitar o desastre. Claro que alertas ficcionais não corrigem nada na vida real. Somos incorrigíveis.

É significativo que a palavra usada nesse sentido tenha começado a circular em inglês, como "dystopia", apenas em 1952. Que seja portanto uma filha do pós-Segunda Guerra –posterior tanto a "1984" quanto a "Admirável Mundo Novo", publicado por Aldous Huxley em 1932, livros que só em retrospecto viriam a ser classificados como distópicos.

No momento em que a palavra nasceu –embora só fosse chegar ao Brasil em fins dos anos 1960, segundo o Houaiss–, estava bem viva a memória de um conflito em que morreram 80 milhões de pessoas. Como se isso não bastasse, a Guerra Fria começava a tornar palpável demais a possibilidade de um apocalipse nuclear.

Também é sintomático o fato de "dis-topia", termo composto com elementos gregos e o sentido de lugar ruim, ter nascido de uma incompreensão do substantivo "utopia", este velho de séculos, ao qual se opunha.

Utopia é uma palavra cunhada pelo inglês Thomas Morus (latinização de seu sobrenome de batismo, More) em 1516, ao imaginar uma ilha governada por uma república perfeita.

Também forjada com elementos gregos, "ou" e "topos", a palavra tinha o sentido de "não lugar". Prevaleceu a crença errônea de que sua partícula inicial fosse "eu", bom. E por oposição a isso se forjou a distopia –o lugar do mal, da perturbação.

O mal-entendido criativo já estava presente nos precursores do nome do gênero futurístico. Tanto no uso precoce –e isolado– de "dys-topian" pelo filósofo John Stuart Mill, em 1868, quanto no termo médico distopia, "localização anômala de um órgão".

Vale notar que vai virando fumaça no céu a diferença entre a distopia e o que seria o antônimo "correto" de utopia ­—a realidade. Estamos fritos.

Receba notícias da Folha

Cadastre-se e escolha quais newsletters gostaria de receber

Ativar newsletters

Relacionadas