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Descrição de chapéu É Coisa Fina feminicídio

Novo livro de Tatiana Salem Levy nos lança impecável e violentamente à cena de um estupro

Não é entretenimento, estamos ali olhando o céu que escurece, sentindo o pavor

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A nova onda do feminismo, que no Brasil (ou mais especificamente na minha vida, na minha bolha) ganhou força há uns 10 anos, chegou me incomodando bastante. Parecia que aquelas mulheres queriam pegar minha vida sexual, inspiração de crônicas e boas lembranças, e me contar que em pelo menos 50% dos casos eu havia sido abusada.

Se você se arrependeu depois que estava na casa do cara e mesmo assim, por medo da má impressão que poderia causar (ou da violência do fulano), continuou. Se você quis parar depois que já estava no meio da transa, mas, por preguiça de explicar (ou medo da reação dele), foi em frente. Se o sujeito era seu chefe vinte anos mais velho e você uma garota deslumbrada. Se a coisa ficou “quente” demais e você sentiu medo. Se ele te fez acreditar que seria um jantar com mais pessoas e de repente uma porta foi trancada e a chave escondida: “Era uma brincadeira”. Se sua cabeça foi forçada para o pênis dele e você acabou rindo porque “vai ver é assim mesmo”. Se não pararam quando estava doendo. Se não te olharam, abraçaram, beijaram, e só ordenaram que você ficasse de quatro.

Vista Chinesa

Avaliação:
  • Preço: 54,90
  • Autoria: Tatiana Salem Levy
  • Editora: Todavia

Eu odiei o feminismo porque dói demais se dar conta de como é possível, por mais de 20 anos, transar tão triste, agressiva e precariamente. Mesmo quando gozamos sendo objeto, é preciso rever em nossa história pregressa por que aprendemos a fetichizar o nosso sofrimento ou a falta de poder em nós.
Se penso nas minhas leituras feministas e lembro de algumas histórias que vivi, fico nauseada. Ainda assim, nunca me aconteceu nada perto do que ocorreu com Júlia, protagonista de Vista Chinesa, novo livro de Tatiana Salem Levy. Então por que começar falando de feminismo, de abusos, de mim e de outras mulheres? Porque todos os dias, mesmo que inconscientemente, nós tememos a exata cena narrada nessa obra imensa e poderosa. Todo dia nós mulheres, sobretudo as que têm filhas, rezam uma espécie de mantra neurótico e infinito: “eu estou viva”. Essa narrativa é de todas nós. Essa dor precisa ser de todas nós.

A história da personagem Júlia é verídica e aconteceu com Joana, uma mulher linda, sensível, obstinada, talentosa, bem-sucedida e que tem aquela ansiedade/angústia que faz com que pessoas mais despertas e afetuosas desejem ser suas amigas. Júlia foi estuprada de forma violenta. Sentiu o cano gelado de uma arma em sua têmpora. Foi arrastada por uma mata. Teve a roupa arrancada. Sentiu a vagina sendo rasgada. Teve que fazer sexo oral em um animal imundo e podre e demoníaco. Apanhou. Levou socos e tapas. Engasgou muitas vezes. Quase desmaiou. Quase morreu. Passou meses vomitando ao lembrar daquele instante que a quebraria para sempre. Anos depois teve filhos e, ao olhar pra eles, sentiu vontade de contar essa história. Dizer que a mãe deles foi estilhaçada e que “ninguém é verdadeiro na lucidez”.

Tatiana não apenas narra o crime ocorrido no Rio de Janeiro, na Vista Chinesa (pista onde muitos atletas correm apreciando embasbacados a beleza da cidade), de forma precisa e vigorosa, como vai além e coloca a arma em nossa cabeça, nos lança na mata, nos rasga, nos perfura, nos violenta. É literatura necessária, pungente, terrível, primorosa. Não vou mentir que não me senti mal depois. Que não chorei no banho e fui dormir sem jantar desejando um calmante. Estou até agora cafungando um odor de lixo no ar e perguntando a todos à minha volta “vocês também sentem?”. Não é entretenimento, estamos ali olhando o céu que escurece, sentindo a ânsia, o pavor, a certeza de que existem demônios soltos pelo mundo.

É um livro sobre mulheres que foram rachadas e a luz que pode emanar delas. Sobre estar viva e continuar. É um baita livro.

"Vista Chinesa", obra de Tatiana Salem Levy - Reprodução

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