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De olhos bem fechados

Vamos falar da pálpebra da mulher de 44 anos

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Apesar do título, infelizmente este não é um texto sobre suruba ou fantasias sexuais.

Vamos falar da pálpebra da mulher de 44 anos. Achei uma foto minha de uma década atrás e nela eu ainda parecia comigo, e não com o Mr. Magoo.

Chegará o tempo (semana que vem?) em que fitarei relaxada um pôr do sol com a mesma face com que aos dezoito anos eu chupava um limão.

Não adianta arregalar os olhos na hora de tirar qualquer foto. Não fico mais jovem, apenas pareço vítima de um Pula Pirata maroto ou de uma feijoada que acabou de se tornar indigesta e necessita despontar inadiavelmente.

Esses dias, em um evento literário, fui obrigada a sorrir ao lado de uma garota de vinte anos. Na imagem, ela está normalíssima, e eu, dois tracinhos miúdos acima do nariz, pareço me proteger de gás lacrimogêneo.

Meus olhos diminuem, apertam e desaparecem na mesma velocidade com a qual meus braços incham, crescem e rasgam sovacos de camisetas antigas. Talvez seja uma preparação para as próximas décadas: darei mais adeus do que descobrirei coisas novas? Nem a pau. Foi só uma metáfora péssima e melancólica.

Meu oftalmologista diz que não posso me entregar. Eu queria logo uns óculos de vovó, grauzão vem 50 anos, vem 60 anos, quem sabe um multifocal. Mas ele me aconselha a lutar até o fim e, se não me engano, usou a expressão "daqui para a frente é só ladeira abaixo". E nessas, para enxergar, aperto ainda mais os olhos.

Agora, onde quer que eu esteja, e mesmo que seja um dia tranquilo e feliz, as pessoas, ao verem minha cara, me perguntam como podem me ajudar a sair dali.

Pesquisei no Google sobre cirurgias de levantamento de pálpebra, mas concluí: tem coisa mais séria com o que me preocupar na vida. Pensei em algo menos invasivo, um procedimento que queima a pele da pálpebra, para que a pelanquinha, uma vez danificada (por alguns mil reais), volte mais esticada. Mas a minha mãe passou três semanas me garantindo que "do jeito que eu tenho sorte" iam queimar minha retina. Achei melhor não correr o risco.

Toda essa introdução é apenas para dizer que tenho outra teoria em contraposição à gloriosa derrocada do colágeno: a nossa pálpebra é também responsável por um exercício dificílimo de se executar chamado "cara de interesse no que o outro tem a dizer".

Em festinhas, quando topamos com tipos desinteressantes que nos enchem as orelhas com asneiras, platitudes e vulgaridades, faz parte da cartilha da educação fazer aquele olhinho vivo e atencioso. Aturamos 89% da humanidade por empatia, imensa força vital e medo de sermos nós mesmos.

Um dia, resolvi não suportar o que o marido de uma grande amiga tinha a dizer sobre vinhos (zzzzzzzz) e naquela noite parei de lutar contra a flacidez da minha testa. Deixei cair, na frente do paspalho, têmporas, masseteres e zigomáticos. Toda a minha rebeldia derretendo frente a sua trivialidade descartável –e foi delicioso. Cheguei no jantar com 25 anos e sai de lá com a idade que tenho hoje. Talvez por isso a gente diga que ouvir gente chata envelhece.

Passei anos disfarçando o potencial irônico-destrutivo da minha cara, fazendo uma força hercúlea para não entortar a boca, escancarar as narinas, retorcer as bochechas e evidenciar minha infinita capacidade para o deboche.

Com o tempo, a gente pega carona na gravidade e derruba nossos olhares e nossas poses para tanto papo-furado. E isso não é gracioso como o viço da juventude, mas é de uma liberdade que jamais senti quando tinha olhos largos e vastos.

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