Tati Bernardi

Escritora e roteirista de cinema e televisão, autora de “Depois a Louca Sou Eu”.

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Tati Bernardi

Amiga, deixa a vida te surpreender

A vingança aliada à produtividade é meu pacto secreto comigo desde a infância

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Luiza insiste para que eu a acompanhe em um jantar na casa de uma amiga. Digo que não vou de jeito nenhum. Nunca fui muito com a cara da anfitriã. Luiza tenta todos os argumentos possíveis. Diz que não posso "andar" a vida toda com as mesmas oito pessoas em um país com mais de 200 milhões de seres humanos. Assegura que a frase "nunca fui muito com a cara da anfitriã" é anos 2010 demais e me pergunta onde estive na última década, com infinitas campanhas em nome da sororidade pipocando nas redes sociais. Até que Luiza finalmente lança o argumento que sempre me preenche de uma leve vontade de estar morta: "amiga, deixa a vida te surpreender".

Toda a minha cota de paciência para pessoas boas acabou com Luiza. Tenho sete amigos terríveis, cínicos, escrotos, e mais Luiza, que é generosa, positiva e doce. Desde que Luiza entrou em minha vida, eu já sabia que estavam encerradas as inscrições para bons elementos. Gente que diz "vai sem pré-julgamento" ou "tenta sair de lá sem julgar os outros". Ah, Luiza, eu adoro como você me julga a pior pessoa do mundo porque eu julgo os outros!

Prato em mesa preparada para jantar - Karime Xavier - 28.ago.19/Folhapress

Mas todo mundo tem um amigo drogado. Luiza é viciada na endorfina macabra de se sentir superior a todos nós. É um demônio preso ao mantra da benevolência. Na esperança de atingir a iluminação, ela dorme todos os dias inebriada pela resplandecência do seu ego. Só a aturo porque, certa de sua inteligência e nobreza, sei que um dia vai acabar marretando seus monumentos.

Uns seis meses atrás, tive o desprazer de cruzar com essa amiga de Luiza numa festinha. Era um desses encontros para os quais já vou sabendo que servirei de alívio cômico para netos falidos de quatrocentões e intelectuais que odeiam o fato de não conseguirem escrever uma única frase que mexa verdadeiramente com seus parcos leitores. Pessoas com aquele olhar de soberba esburacada e queixo voltado para as estrelas —que estão apagadas para eles. Frequento essas festas para que pensem que riem de mim, quando, na verdade, só vou para ter sobre quem escrever depois, e para que muita gente possa rir deles. A vingança aliada à produtividade é meu pacto secreto comigo desde a infância.

De cara entendi tudo. A amiga de Luiza é o clássico tipo calado e com um sorrisinho jocoso no canto da boca. Certamente estudou muito, embora hoje não se autorize a nada. Ela aparenta certa repulsa do que acredita ser o teatro barato dos amostrados, enquanto eu me pergunto para quem pessoas assim encenam seus monólogos franceses cabeçudos. Quem estaria na plateia dessas pavoas recalcadas, ávidas pela aclamação que esnobam, se nem na infância elas suportavam o frio na barriga de subir rapidinho em um bidê para conferir o vestido?

Vão morrer à espera de um décimo doutorado que as possibilite qualquer exteriorização. E riem, claro, das palavras e dos gestos destrambelhados que brotam de quem não se importa com o inacabado e o ridículo. Se a amiga de Luiza sorrir demais, veremos muitos sentimentos mesquinhos tatuados em seus caninos. Não gosto dela. Não gosto de quem não traz nada de si para um encontro, mas ousa pinçar com boquinha de escárnio refinado minhas pelancas servidas em uma bandeja espelhada.

Mas Luiza implorou, e eu deixei a vida me surpreender. Fui até a casa de sua amiga jurando que não ficaria nem vinte minutos e com a certeza de que sairia de lá com impressões ainda piores. Estava convicta de que a mulher era de fato péssima. Cheguei lá me achando a grande leitora da alma humana. E com que cara eu fiquei quando percebi que estava absolutamente certa?

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