Tati Bernardi

Escritora e roteirista de cinema e televisão, autora de “Depois a Louca Sou Eu”.

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Tati Bernardi
Descrição de chapéu É Coisa Fina

Vagabundos, junkies e poetas

Coletânea de contos que consagrou Denis Johnson, autor sobrevivente do alcoolismo e do vício

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Perigosíssimo dizer que tal livro, filme ou série poderia agradar mais aos homens. Temerário, inclusive, tentar resumir a humanidade a somente dois gêneros possíveis. Essa diferenciação pode soar (e ser) bastante preconceituosa, desatualizada e limitada. Acontece que gosto de viver na berlinda do cancelamento e confesso que algumas vezes (nasci na década de 70), ainda penso assim.

Acabo de me surpreender de novo. Numa primeira olhada, não achei que um livro sobre vagabundos junkies criminosos perdidos pelas noites americanas me "falaria ao gênero". Pois cheguei ao final de cada um destes contos de Denis Johnson, escritos em 1992 e lançados agora no Brasil pela Todavia, tendo a certeza de que a crueza é a única poesia real e possível; que a franqueza direta e cortante dos bêbados é a mais profunda e refinada ironia e que a prosa mais literária é justamente aquela que escamoteia uma obsessão em ser alta literatura.

Foto com vista de parte da rua e da calçada mostra garrafas de bebida enfileiradas
O oposto dos heróis de Kerouac, nos contos de Denis Johnson os homens são frágeis e derrotados - Unsplash

Em "Dois homens", o narrador-personagem, tão imerso na história quanto anônimo, está com seus companheiros de desregramentos e bebedeiras, dois "amigões" que ele no fundo odeia: "Nós três tínhamos virado um grupo por algum equívoco". Trata-se de uma relação que já deveria ter acabado porque "a gente tinha aberto o peito e mostrado nossos corações covardes, e é impossível manter uma amizade depois de uma coisa assim".

Ao saírem todos entorpecidos de um baile, procuram pelo Fusquinha verde que os levaria até suas casas, e encontram um desconhecido, aparentemente surdo e mudo, dormindo no banco de trás do carro. Passam então a madrugada tentando desovar o fulano, sendo guiados para ruas improváveis e sem se incomodarem muito com as horas infrutíferas.

Quando enfim se livram do cara, olham para trás e o veem "parado entre as plantações sob a luz das estrelas, como se estivesse com uma ressaca horrível ou tentando encaixar a cabeça de volta no pescoço. Mas não era só a cabeça, era tudo nele que tinha sido arrancado e jogado no lixo. Não era à toa que ele não ouvia nem falava, não era à toa que não queria nada com as palavras. Tudo nesse sentido já tinha sido consumido".

A citação acima é uma das que grifei com mais devoção. O livro todo é lotado dessas frases brilhantes jogadas como se fossem filosofia barata de gente drogada.

No conto "Sob fiança", mais uma vez o narrador está no Vine, seu bar (horrível) preferido, lugar no qual ele podia admirar homens que desperdiçaram uma vida inteira, enquanto ele ainda só havia desperdiçado alguns anos: "Tínhamos essa sensação de desamparo, de inevitável. Íamos morrer algemados. Iam dar um basta na nossa vida, e não seria culpa nossa". Jack Hotel sai do bar com a mesma quantidade de heroína que nosso narrador. No entanto, muito mais propício a sofrer uma overdose, pois, diferente do protagonista, não tinha uma namorada com quem dividir a droga. Não dá pra dizer que não é um livro romântico.

O oposto dos heróis de Kerouac, aqui os homens são frágeis e derrotados, as estradas não levam a nada e as almas não parecem livres nem quando escapam tantas vezes das prisões. Apenas uma coisa estava a salvo o tempo todo, e Denis Johnson, depois do sucesso dessa coletânea e de muitas outras obras que viriam até o final da sua vida, em 2017, certamente sabia disso: o talento invejável e raro de uma voz literária original.

Cabiam muitos vícios, furtos, mortes, drogas injetáveis e vômitos na "noite amena de primavera", mas ela era (quanta beleza cabe num soco?) "como um estrangeiro baforando na nossa cara".

Filho de Jesus

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