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Jornalista e escritor, é autor de "Carolina, uma Biografia" e do romance "Toda Fúria"

Dois contistas e o discurso da sobrevivência para além do mundo da escrita

Ler Pedro Machado e Ronald Lincoln nos retroalimenta de esperanças

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"Escrevemos porque não queremos morrer. É esta a razão profunda do ato de escrever", disse o prêmio Nobel de Literatura, José Saramago.

Estas palavras de Saramago me remeteram a duas leituras recentes: "Desnudo", de Pedro Machado, e "Disritmia", de Ronald Lincoln –dois livros de contos, dois autores negros periféricos do Rio de Janeiro, mas que trazem entre si uma similaridade única: um olhar perscrutador sobre o sentido da escrita como meio de sobrevivência.

'Desnudo', de Pedro Machado - Reprodução

Em "Desnudo", Pedro Machado ficciona temáticas conflitantes. Suas histórias falam de racismo, religião, violência policial e pobreza. São histórias cortantes de uma dura realidade presente na retina de qualquer menino ou menina da comunidade ou da favela, mas que acaba sendo, por tabela, a história de toda gente preta e pobre de qualquer ponto da cidade ou da Baixada Fluminense, onde mora.

Pedro Machado é um narrador habilidoso. Mas a dimensão da sua escrita não está exatamente na forma que escreve ou narra. Vai além. Ela dialoga com fatos do cotidiano, da urbanidade, do dia a dia de uma cidade que se movimenta pelo asfalto e pelos trilhos onde correm os trens. E, com isso, se alimenta pela opressão e se manifesta pela inversão de valores: os mais fracos são menos protegidos do que os mais fortes –e estes estão, em geral, sempre ao lado dos opressores, dos poderosos.

Esse é um problema cuja equação parece não ter solução há quinhentos anos no Brasil: a mesma lei que aboliu a escravidão mantém senzalas suburbanas, de norte a sul do país.

É exatamente a partir daí que as narrativas de "Desnudo" começam a fazer todo sentido. O autor deixa o "eu" autoral de lado e passa a falar do "eu" coletivo, do que somos, do que nos desnudam. Isso está bem presente em "Tereza na Escola", quando o conflito religioso, ao mesmo tempo que separa, que expõe feridas, une, aproxima. Mas ecoa também em "A Última Aula", onde a sabedoria do professor Abdias, existe indiferente a um "mundo tão violento e tão injusto".

Sem contar a narrativa que nomeia o livro de oito contos, que dá a dimensão da mão firme de Pedro em segurar suas histórias até o final. O personagem de "Desnudo", por exemplo, um professor de literatura, tem as mesmas paixões do seu criador literário: ama Machado de Assis, Lima Barreto e Cruz e Sousa. Aliás, o poeta negro catarinense abre o livro com uma epígrafe, tirada do soneto "Só", um dos seus clássicos.

Já "Disritmia", de Ronald Lincoln, é um livro desafiador, pelo grito e pela linguagem. Poderia também dizer pela coragem de dizer e de escrever. Lincoln submete as temáticas da vida a seu capricho e ordem. Ele não as quer real, pelo contrário, as quer inteiras, incomodativas, disruptivas.

Seus personagens são partes comuns de problemas comuns: lidam com uma realidade que dói, que deixa marca no corpo e na alma. Ao mesmo tempo que falam de si, sinalizam que estão falando para todos, para um universo que não os silenciam, mas os entende.

'Disritmia', de Ronald Lincoln - Reprodução

Os contos de "Disritmia" não traduzem falas de um só lugar: ecoam sentimentos, talvez contidos, talvez insatisfeitos, mas certamente amordaçados, presos nas gargantas. Como na história da emprega Celina de "Quase da Família", que quer explodir com a patroa mas "é desajeitada com palavrões", ou do genial "Bilhete", que confronta os sonhos do jovem Leonardo com a realidade dura da fome dos irmãos. Há também boa literatura em "Cortina de Fumaça" e "Imperatriz Furiosa".

Ronald, a cada página, nos retira uma camada, nos descasca, nos desseca por inteiro. É a sensação que temos diante do drama que permeia o conto homônimo "Disritmia", que dá título ao volume. A partir dele, ou da história do presidiário Zé e de Janaína, é que conseguimos alcançar o "bagulho doido" contido em cada um dos 16 contos deste belo livro.

Ou seja, tanto "Desnudo" quanto "Disritmia" fabulam histórias que nos regeneram e nos espantam. Não há como ficar neutro. Nem perdido, nem encontrado. O caminhar dos personagens, seja ele, seja ela, suas intrigadas trajetórias, o que nos oferecem de alternativa, nos remetem a frases que "martelam" em "nossa cabeça".

Moldando olhares –os deles próprios– , tecendo o novelo de um cotidiano assustador, que impõe o medo pela ordem violenta e submete uma legião pela fome, ler esses autores nos retroalimenta de esperanças.

O que eles propõem aos leitores é, afinal de contas, que olhem para seus escritos como um ato revolucionário, porque além da sobrevivência material, carnal, dentro do sentido da vida, eles também se arrogam ao direito de sobreviverem para além do mundo da escrita.

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