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Diretora do Instituto Gerar de Psicanálise, autora de “O Mal-estar na Maternidade” e "Criar Filhos no Século XXI". É doutora em psicologia pela USP.

Com quantas omissões se faz um abuso?

Patologização do criminoso e cumplicidade do entorno não podem ser minimizadas

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Quando a Rede Globo respondeu às denúncias de assédio sofrido pela comediante Dani Calabresa com a proposta de que Marcius Melhem, o suposto agressor, fizesse psicoterapia, confesso que senti vergonha alheia. Ao fazê-lo, a instituição admitiu que o comportamento de Melhem era inadequado e, de quebra, confundiu o lugar do tratamento psicológico com o lugar da lei.

O ato criminoso é, muitas vezes, um chamado inconsciente à lei, seja para que ela opere —na neurose—, seja para burlá-la —na perversão—, seja para testar sua existência —na psicose—, num jogo que precisa ser desmascarado primeiramente pela Justiça.

Lembro de alguns exemplos. O psicanalista recebe um telefonema informando que seu paciente foi preso por atentado ao pudor, correndo nu pela rua. O policial quer saber se o profissional se responsabiliza pelo sujeito, que alega ser louco e estar em tratamento com ele. Outro paciente pede para que seu analista assine uma declaração de que sofre depressão e ansiedade, pois ele se envolveu numa briga e vai usar a carta para se justificar. Em ambos os casos a resposta é um sonoro não.

Marcius Melhem - João Motta/Globo/Divulgação

Lidar com as consequências de nossos atos é um divisor de águas no tratamento psicanalítico. A ideia de que seríamos assim ou assado por causa dos outros é uma das primeiras balelas que a análise vem solapar. Sim, nos constituímos a partir do ambiente no qual fomos criados, mas a forma como lidamos com ele é nossa responsabilidade. Recomendo o filme “La Tête Haute” (2015), no qual um jovem delinquente se depara com uma juíza (Catherine Deneuve) que aposta na lei, ainda que apoiada nas condições francesas de um reformatório juvenil. Os órgãos competentes devem encontrar meios justos de fazer o cidadão arcar com seus atos, enquanto se indica tratamento para suas mazelas psíquicas.

Em análise, cabe ao sujeito assumir seu desejo, seus atos e seu sofrimento. Mas, como Melhem afirmava “brincando”, a culpa por seus ataques seria da colega, “gostosa demais”. Com um discurso desses, não passaria das entrevistas iniciais —aquelas nas quais avaliamos a implicação do sujeito na sua demanda por uma análise.

A segunda questão é a tendência de ignorarmos que um crápula sozinho não faz verão. Para cada Roger Ailes, Jeffrey Epstein, Harvey Weinstein, Robinho, André Camargo Aranha temos assessores, secretárias, colegas, autoridades, familiares, chefes, instituições acobertando as cenas e ignorando sistematicamente as queixas das vítimas. Sem um staff cúmplice, seria impossível a repetição do crime ou a impunidade.

Por ação ou omissão aqui se revela o prazer inconfesso de testemunhar o poder do abusador sobre a vítima. O cúmplice desfruta da fantasia de vir a ter o mesmo poder sobre alguém um dia. É a lógica do pobre de direita que se identifica com privilégios e impunidade da elite na fantasia delirante de vir a fazer parte do clube.

Também aparece a inveja da vítima por ela ser a escolhida do abusador, que se reverte no prazer de vê-la sofrer. Não há como esperar que a análise resolva as fantasias onipotentes e o gozo sádico de cada cidadão até que aprendamos a conviver em paz. Para isso existe a lei.

Sem a covardia moral e cumplicidade de muitos, as cenas de abuso poderiam ser drasticamente reduzidas.

Com a coragem de alguns, podemos torcer para que a impunidade deixe de ser a regra e se torne a desonrosa exceção.

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