Mônica Bergamo

Mônica Bergamo é jornalista e colunista.

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'Marcius Melhem atuou de forma violenta com várias atrizes', diz defesa de vítimas de ex-diretor da TV Globo

Advogada quebra o silêncio e relata série de denúncias de assédio sexual de 12 pessoas que ela representa contra ex-humorista da emissora

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Um mistério ronda os corredores do departamento de humor da TV Globo desde agosto. Por que Marcius Melhem, até então poderoso diretor do núcleo, foi desligado da emissora naquele mês sem qualquer explicação?

Humorista talentoso com assinatura estampada em sucessos da casa como “Zorra”, “Escolinha do Professor Raimundo” e “Tá no Ar: A TV na TV”, ele foi demitido depois de quase duas décadas de trabalho no maior canal do país.

Oito meses antes, em dezembro do ano passado, Melhem tinha sido acusado de assédio sexual pela atriz Dani Calabresa, que procurou o compliance da emissora para fazer a denúncia.

Depois dela, outras mulheres buscaram o mesmo canal para relatar fatos semelhantes. Descreveram tentativas de as agarrar à força, envio de mensagens inconvenientes, ambiente tóxico de trabalho.

O ator e humorista Marcius Melhem - João Motta - 25.abr.2016/Globo/Divulgação

Na nota em que comunicava o desligamento de Melhem, no entanto, a emissora nada disse sobre nenhuma dessas denúncias de assédio. E afirmou que ali então se encerrava uma “parceria de sucessos”.

Foi o suficiente para o caldo entornar. Insatisfeitas, algumas das mulheres se organizaram para reclamar sobre o desfecho com a direção da emissora. O apoio a elas cresceu, e um grupo de mais de 30 funcionários ou parceiros da empresa participou de reuniões internas na empresa sobre esse assunto.

A Folha vem desde então acompanhando o caso.

Durante dois meses, conversou com quatro atrizes que se dizem vítimas de assédio e que formalizaram as acusações no departamento de compliance da TV Globo.

Ouviu também o relato de cinco outras pessoas que afirmam ter testemunhado os fatos narrados pelas vítimas.

Apesar da disposição em relatar suas histórias, todas impunham como condição que seus nomes não fossem divulgados, nem os detalhes das histórias que contavam.

No começo do mês, elas decidiram que a advogada criminalista Mayra Cotta, que as assessora no caso, desse um depoimento sobre o assunto.

*

Você fala em nome de quantas vítimas e testemunhas? São seis vítimas de assédio sexual e seis testemunhas. Há vítimas de assédio moral. E há um grupo de apoio a elas, de mais de 30 pessoas.

As vítimas e as testemunhas que eu represento depuseram no processo de compliance [aberto pela TV Globo para apurar denúncias contra o ex-diretor]. O processo foi encerrado e elas estavam sem saber muito bem como se organizar para que essa história tivesse um desfecho que reconhecesse tudo o que elas passaram e toda a gravidade do comportamento que o Marcius Melhem teve enquanto ele foi chefe.

Obviamente tem sempre muitas dúvidas sobre o que pode ser falado, os riscos de uma judicialização, o que pode ser feito e os caminhos jurídicos que podem ser tomados. Eu fui chamada nesse contexto. Fui consultada como uma advogada que tem experiência e que trabalha com esse tema para ajudar na narrativa pública dos fatos, em como lidar com o caso para que ele não fosse simplesmente varrido para debaixo do tapete.

Como funciona o grupo? É um grupo que se juntou por solidariedade às vítimas. Por saber como a situação era grave, como o Marcius Melhem foi um chefe que atuou de forma muito violenta com várias atrizes. Que assediou moralmente também outros funcionários.

São mais de 30 pessoas que apoiam ou que foram testemunhas dos casos de assédio. Do grupo fazem parte homens também, que acreditam nelas, que estão sendo muito firmes nessa luta.

Quais são, afinal, as acusações? São acusações de assédio moral e de assédio sexual. Você falou com elas [vítimas] individualmente. Mas não tem ninguém falando em on [publicamente]. A gente toma muito cuidado.

Para esclarecer, eu falei com quatro vítimas e cinco testemunhas. Elas fizeram narrativas mas não quiseram se expor. E você se dispôs, em nome delas, a avançar nesse detalhamento. Exato. Todas elas denunciaram os fatos internamente [na TV Globo]. Foram ao compliance da empresa. Tomaram as medidas cabíveis.

Mas é muito difícil você se expor publicamente como uma vítima. Sabemos como mulheres que denunciam homens por assédio sexual às vezes são tratadas no tipo de sociedade em que a gente vive. Nenhuma mulher quer ser definida para sempre como uma vítima de assédio sexual. Por isso [surgiu] a ideia de eu falar em nome desse grupo. É justamente para não “fulanizar”. Não tornar isso a história de uma mulher. São várias as que foram vítimas.​

Quais foram as condutas dele vistas como assédio? É um chefe que se vale de sua posição para tentar usar o poder que tinha de contratar ou demitir para as constranger a se envolver com ele.

Houve um comportamento recorrente, de trancar mulheres em espaços e as tentar agarrar, contra a vontade delas. De insistir e ficar mandando mensagem inclusive de teor sexual para mulheres que ele decidia se iam ser escaladas ou não para trabalhar, se ia ter cena ou não para elas [nos programas de humor]. De prejudicar as carreiras de mulheres que o rejeitaram. De ficar obcecado, perseguindo mesmo. Foi um constrangimento sistemático e insistente, muito recorrente.

Antes de trabalhar com assédio sexual, eu trabalhava com violência doméstica na Universidade de Brasília, de onde eu sou. E percebi, na descrição dos casos [que envolvem Marcius Melhem], como um chefe assediador é semelhante a um marido abusador.

Ele isolava as atrizes, tinha o poder de não as deixar ir para outros lugares [na emissora], fazer outras coisas. E criava um ambiente de trabalho tóxico. As pessoas se sentiam presas, sem conseguir se livrar daquilo. Ele usava situações de trabalho para as tentar agarrar à força, inclusive usando violência.

Que tipo de violência? De agarrar, de as colocar contra a parede, tentar beijar à força. Isso é bastante violento.

Como separar o que poderia ser eventualmente um impulso, uma cantada, uma tentativa de sedução, a paixão dele por alguém, de assédio? É uma excelente pergunta. Porque às vezes realmente tem uma zona cinzenta entre o flerte e o assédio, ou a importunação sexual.

Mas, nesse caso, a zona cinzenta foi deixada para trás. A linha foi cruzada, a zona cinzenta ficou a quilômetros de distância.

Foram casos de assédio sexual mesmo. De mulheres falando não, não quero, me solta, não vou beijar, não vou ficar com você. E ele tentando, agarrando. Não tem zona cinzenta, isso é violência. E aí tem algo muito sério: ele era chefe delas. Ele tinha uma posição de poder.

Melhem assumiu a direção do núcleo de humor em 2018, mas há relatos de fatos de anos anteriores, quando ele não era ainda chefe. É possível dizer que houve assédio? Antes de se tornar chefe, ele era um dos redatores principais dos programas de humor e do “Zorra Total”. Ele tinha o poder de escalar ou não as atrizes escrevendo os papéis para elas.

Mesmo não sendo chefe formalmente, tinha posição hierárquica superior. Era capaz de definir quem trabalhava e quem não trabalhava. Tinha o poder de colocar uma atriz na geladeira, por exemplo. Ou de escrever cenas em que contracenava beijando, agarrando a atriz. De usar esse poder de redator, e depois de chefe, para trazer as mulheres para a sua esfera de poder, e com isso as constranger.

O homem que tem uma posição de chefia precisa entender que ele não flerta com uma funcionária em posição de igualdade.

É muito difícil para uma funcionária falar não para a pessoa que a pode demitir no dia seguinte —como ele fez com algumas das que resistiram, que disseram não a ele. Não é uma escolha legítima dizer “ou você aceita ficar comigo ou eu vou prejudicar a sua carreira”. Não tem consentimento livre, ainda que as mulheres escolham entrar nessa relação.

Os relatos se assemelham? Uma coisa que me chamou a atenção, quando comecei a escutar os relatos, era a repetição. Uma mulher depois da outra, eu escutava a mesma forma de ação dele —tentar agarrar e depois falar que foi brincadeira. Mandar mensagem inapropriada. Ficar indo atrás insistentemente, perseguindo. E até caso de trancar numa sala, num banheiro, e agarrar à força. Conversei individualmente com as vítimas, extensivamente, por muito tempo. Ouvi em detalhes as histórias. Não é simplesmente um cara apaixonado, com muitos desejos. Não. É um homem que abusou de seu poder para assediar as mulheres.

O que mais é possível falar da relação dele com as atrizes? Há semelhança com o marido abusador. O Marcius se apresentava como a pessoa que as trouxe para a TV Globo, que estava cuidando delas ali dentro, que estava protegendo, como responsável pela carreira delas.

E ele não era. As mulheres fizeram as carreiras porque são talentosas. Pelo trabalho. E ele prejudicou muitas delas também.

Por que elas não querem dar entrevistas? As pessoas têm medo, muito medo. Um chefe assediador tem essa capacidade de criar um temor permanente nas pessoas. Mesmo ele não estando mais lá, elas têm medo de ele se vingar, de continuar sabotando as carreira delas. Não tem um ambiente seguro para todo mundo se expor, todo mundo falar. É difícil.

Várias das seis [vítimas] com quem conversei dizem isso, que outras pessoas depois ligaram para elas e falaram “eu também fui vítima, comigo também aconteceu”. Eram pessoas que tinham preferido deixar isso para trás.

Mas, quando uma das primeiras vítimas foi ao compliance, várias outras que nunca tinham falado a respeito ligaram para agradecer.

Há relatos de fatos que ocorreram há três ou mais anos. Por que a demora em denunciar? Primeiro porque alguns episódios são traumáticos. A vítima precisa de um tempo para ela mesma conseguir revisitar aquilo.

Depois que você passa por uma violência, é normal não querer mais pensar naquilo, querer seguir em frente. Até que você percebe que é impossível seguir em frente. Que aquilo está assombrando você. Está ali permanentemente incomodando e fazendo sofrer. E você tem vontade de fazer algo.

Como em todos os casos de assédio, as mulheres estavam sofrendo muito sozinhas, silenciosas, sem conversar com ninguém, guardando para si o trauma. E aí esse silêncio foi rompido. Na hora em que ele é rompido, ninguém mais consegue segurar e precisa falar, denunciar. Você desenterra os traumas.

Então também teve isso de, a partir da força do coletivo, de encontrar outras mulheres, de reconhecer outras vítimas, de saber que não estavam sozinhas, elas se sentirem fortes para falar.

Quando isso acontece, é uma barragem que se rompe.

Por que isso foi parar no compliance da TV Globo em 2019? Qual foi o estopim para as acusações? Foi a denúncia de Dani Calabresa? Não vou falar nomes porque não foi uma mulher que liderou as demais contra ele. Uma fez apenas o primeiro furinho na barragem, que estourou.

Quantas pessoas procuraram o compliance? Que eu represento, foram, entre vítimas e testemunhas, 12. Mas temos notícias de que foram mais pessoas.

O que levou as vítimas a procurarem você? Houve insatisfação com o desfecho do caso? Elas me procuraram porque publicamente a única versão que se tem sobre essa história é a dele.
Nunca houve um reconhecimento do que aconteceu com as vítimas.

E esse reconhecimento é muito importante. Um assédio sexual deixa uma terra arrasada. Tudo o que elas querem é poder trabalhar sem ser assediadas. É fazer uma cena em que a única preocupação delas seja atuar bem, e não se vão ser agarradas à força pela pessoa que escreveu o papel para elas.

O que elas querem é o reconhecimento de tudo o que passaram, dos graves acontecimentos.


CRONOLOGIA DAS DENÚNCIAS

. Em dezembro de 2019, Marcius Melhem é denunciado por assédio sexual pela atriz e humorista Dani Calabresa

. Em março de 2020, Melhem deixa a direção do núcleo de programas de humor da Globo e pede licença das funções de roteirista e ator alegando motivos pessoais

. Em 14 de agosto, Melhem encerra sua trajetória na Globo. Em nota, a emissora afirma que a decisão se deu ‘de comum acordo’ e que a relação com ele foi uma ‘parceria de 17 anos de sucessos’

. Após os elogios, uma carta é enviada ao diretor-geral da emissora, Carlos Henrique Schroder. Por meio dela, um grupo de cerca de 30 contratados da emissora —na sua maioria atrizes, mas também atores e profissionais de outras áreas— manifestam descontentamento com o encaminhamento do processo

. Em 20 de agosto, a diretora de desenvolvimento e acompanhamento artístico da TV Globo, Mônica Albuquerque, realiza a primeira reunião com o grupo

. No dia 21 de agosto, ocorre um novo encontro, desta vez com a diretora de compliance, Carolina Junqueira. O descontentamento, no entanto, permanece

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