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Diretora do Instituto Gerar de Psicanálise, autora de "Criar Filhos no Século XXI" e “Manifesto antimaternalista”. É doutora em psicologia pela USP

Descrição de chapéu Mente

O 'bluetooth' do inconsciente nunca desliga

O efeito disruptivo e traumático do não dito é bem conhecido da psicanálise

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Cabe aos adultos tentar atenuar a transmissão da história familiar para as próximas gerações. Guerras, mortes, suicídios, derrocadas financeiras, prisões, drogadição, traições, assassinatos, enfim, os eventos transgeracionais que compõem nossa história deverão chegar às crianças na medida de sua capacidade de compreender o demasiadamente humano em nós.

Com o tempo, as tragédias tendem a ser romanceadas, como a história nada incomum da moça branca que teve de fugir para casar com o rapaz negro porque os pais eram contra a relação interrracial. Acaba com os sogros racistas morrendo velhinhos nos braços magnânimos de um genro anteriormente rejeitado. Fica de lição para a descendência.

No eletrizante podcast "Collor X Collor", vemos o ex-presidente Fernando Collor e seu irmão Pedro colocarem a família, a empresa, o país e algumas vidas a perder só para saber quem é o preferido da mamãe. O segredo da derrocada deles é tão antigo quanto a história de Caim e Abel —nome do primeiro episódio.

Tudo parece muito simples se achamos que basta controlar os agentes externos para que os assuntos da família não cheguem cedo demais — ou nunca cheguem— aos ouvidos dos filhos. Esconder a adoção, por exemplo, era um gesto corriqueiro algumas décadas atrás e implicava em grandes manobras logísticas. Sumir durante nove meses e voltar carregando um bebê; mudar de bairro ou cidade eram práticas necessárias para quem achava que iria "traumatizar" a criança com a verdade sobre sua origem.

Na realidade, o grande trauma não está na origem, mas na dificuldade de assumir que o modelo de família hegemônico —cisgênero, heterossexual, casado, com filhos biológicos— é o grande moedor de carne a triturar as famílias reais. Que as crianças adotadas nesse sistema apresentassem sintomas era tido como herança da família que supostamente "abandonou", não como o efeito pernicioso do próprio segredo. O mito de Édipo fala justamente da tragédia que decorre do segredo da origem, quando temos a pretensão de escapar dele.

'Édipo e a Esfinge', de Gustave Moreau, 1864 - Wikimedia Commons

Os segredos vazam e é muita ingenuidade acreditar que isso aconteça só a partir da fofoca alheia ou de algum fato novo revelador. O não dito se revela nos mínimos detalhes, que a criança capta mesmo não sabendo o que captou. Ela pode não saber o conteúdo, mas será impactada inconscientemente cada vez que o assunto vier à baila. Pode ser o tom de voz, uma ruga de expressão, o olhar, o intervalo entre as palavras, os lapsos e atos falhos. Infinitos são os indícios de que o "bluetooth" do inconsciente nunca desliga. Atores e atrizes trabalham exatamente aí: transmitir texto e subtexto, muitas vezes contraditórios.

O efeito disruptivo e traumático do não dito é bem conhecido da psicanálise, seja o segredo que nos foi contado por outros, seja aquele que ocultamos de nós mesmos. É o caso da paciente de Freud, chamada Elizabeth, com graves sintomas histéricos —inclusive com dificuldades para se locomover. O caso foi resolvido pela conscientização de seu amor pelo cunhado, recém-viúvo de sua querida irmã. Ao admitir para si mesma —na presença do analista— seu desejo, pôde voltar a rodopiar pelos salões de Viena. Não casou com o amado, mas se livrou de um dilema moral inconsciente que a estava impedindo de viver sua vida.

O que fazer a partir do revelado, só a ética de cada um dirá, nenhum analista deveria meter a colher aí.

Nossas histórias podem ser terrivelmente desagradáveis, e muitas vezes o são, uma vez que viver nunca foi fácil. Mas para que não se tornem maldição, devem ser bem ditas.

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