Vera Iaconelli

Diretora do Instituto Gerar de Psicanálise, autora de “O Mal-estar na Maternidade” e "Criar Filhos no Século XXI". É doutora em psicologia pela USP.

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Psicanalistas por atacado

A psicanálise tem gozado de enorme prestígio e popularização para o bem e para o mal

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Tive um colega de faculdade que diante das opções de atuar como psicólogo na escola, na empresa ou na clínica não titubeou em escolher a última. A escolha me surpreendeu, pois o cara nunca havia demonstrado interesse em fazer psicoterapia de qualquer tipo.

Argumentou que se interessava pelas discussões de psicanálise na clínica-escola. Com ele descobri algo que não canso de ouvir desde então: a pretensão de analisar o inconsciente alheio, sem ter que se haver com o próprio. A graça da anedota está na ingenuidade com que ele o admitiu para si mesmo e para mim. Em geral, a coisa fica disfarçada até da própria pessoa.

Divã com balão de diálogo feito de arame pela artista Simone Grecco
Divã com balão de diálogo feito de arame pela artista Simone Grecco - Eduardo Knapp 24.set.2019/Folhapress

Freud não deixou dúvidas de que a via régia do inconsciente era o sonho. E, ao contrário do colega acima, não se furtou a analisar os próprios, compartilhados nos dois volumes da obra-prima "A Interpretação dos Sonhos" (1900) e em outros textos. Desde então se sabe que a formação de um psicanalista vai na contramão da lógica acadêmica.

A psicanálise no Brasil tem gozado de enorme prestígio e popularização para o bem e para o mal.

Para o bem, pois revela uma produção nacional de alto nível, oxigenada pelo debate com os estudos das opressões social, racial e de gênero. Bem distante do anacronismo que tomou conta de alguns psicanalistas europeus misóginos, transfóbicos e colonialistas.

Para o mal, infelizmente, quando se veem propostas de cursos profissionalizantes, cujos diplomas garantiriam a atuação do psicanalista, destruindo tudo que entendemos por psicanálise. É quase impossível dialogar com quem imagina que a invenção de Freud se reduziria ao artifício acadêmico.

Mas existe um outro grupo de aspirantes à psicanalista, que sempre se encontra dentro de instituições sérias, nas quais o tripé análise pessoal, supervisão e teoria funciona a contento. Ainda aí, não raro, vemos aqueles que só estão em busca de uma profissão que os recoloque no mercado de trabalho ou de status. Comungam da pretensão de meu antigo colega de fazer o omelete da clínica sem quebrar os ovos.

Declarações de amor à psicanálise, conceitos recitados de cor, sofrimento genuíno sobre o divã, nada disso revela o talento de aspirantes a uma das profissões mais bizarras que se conhece. A própria aspiração de "ser" psicanalista é para quem não entende que uma análise leva ao "des-ser", como Lacan propunha, ou seja, leva ao desapego das identificações com as quais enchemos a boca para nos intitular. "Sou isso", "sou aquilo" é a primeira coisa que uma análise põe em xeque.

A produtividade traduzida por horas de estudo da teoria, de análise pessoal e de supervisão não tem relação inequívoca com a formação de um analista. Embora todas essas atividades sejam imprescindíveis, nem sempre revelam o desejo legítimo de escutar o inconsciente. De fato, poucas vezes o fazem.

Um psicanalista talentoso costuma ter a capacidade ímpar de mergulhar no nonsense, a desesperança em se medir com os outros, a capacidade de autodeboche e o encantamento —não sem angústia— pelas desconcertantes manifestações do inconsciente. Ao contrário do que se vende por aí, o trabalho do psicanalista se assemelha muito mais ao encontro de Clarice Lispector com a barata no quartinho dos fundos.

Quantos almejam experimentar da massa branca da qual o inseto é feito? Só a análise de cada um poderá dizer. Se parece papo para iniciados, é bom reiterar que se trata de iniciados no miserê humano, e não em suas pretensas glórias.

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