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Grupo se mobiliza para evitar que travesti seja enterrada como indigente em SP

Vítima foi morta no centro; testemunha diz ter ouvido grito de 'Bolsonaro'

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São Paulo

Ativistas da comunidade LGBT de São Paulo se mobilizam para impedir, em poucos dias, que uma travesti morta na madrugada de terça-feira (16) seja enterrada como indigente. ​

O crime ocorreu no centro da cidade, na avenida São João, e além de levantar a suspeita de motivação contra LGBTs, pode ter sido o mais recente caso de violência relacionada ao acirramento eleitoral. Segundo o relato de uma testemunha à Folha, houve um grito de "Bolsonaro" momentos antes do crime.

Fachada do hotel San Raphael, no Arouche, onde travesti foi socorrida após esfaqueamento - Géssica Brandino - 16.out.18/Folhapress

Nelson Matias Pereira, sócio fundador da ONG APOLGBT (Associação da Parada do Orgulho LGBT de São Paulo), diz que tem contatado outras entidades LGBT para formar uma rede e identificar a vítima no prazo de dez dias, prazo dado pelo IML (Instituto Médico Legal). "Estamos fazendo uma força-tarefa com outros movimentos para encontrar alguém que conheça ela ou que identifique [o corpo]."

Nelson afirma que não se sabe nem o nome da vítima. "Inicialmente ouvi muito Priscila. Depois, Vanessa."

De acordo com a Secretaria da Segurança Pública, ela não portava quaisquer documentos quando foi socorrida, e ninguém reclamou o corpo no IML. A pasta informa que o cruzamento de impressões digitais não foi suficiente para descobrir a sua identidade —o que indica que o RG deve ter sido emitido em outro estado.

O proprietário de um estacionamento na frente do bar onde ocorreu o crime, Guilherme Barbosa da Silva, diz que dormia quando ouviu uma discussão. "Ouvi o grito 'Bolsonaro', depois 'eu não voto nele', mas não levantei", relatou à Folha​, explicando que a gritaria na região é comum às madrugadas.

Guilherme diz que só se levantou quando ouviu os gritos de dor. "Ela gritou 'Ai, ai, ai! Meu Sangue, meu sangue!', aí eu despertei e saí [para a rua], mas quando cheguei só estava o rapaz do prédio [ao lado] limpando o sangue do chão."

A vítima foi socorrida na porta do hotel San Raphael, no Largo do Arouche, a 110 metros do bar, na altura do número 1.300 da avenida São João. Foi encontrada com muitas perfurações no abdômen, rosto e braço direito, segundo a secretaria.

"Se eu tivesse acordado antes com certeza tinha pegado meu carro e levado [a vítima] para o hospital", diz Guilherme. "Para mim com certeza foi por causa de política. Mas a verdade só sabe quem estava lá [no bar]."

Levada à Santa Casa de Misericórdia, a vítima não resistiu aos ferimentos. Na manhã de terça, tanto o Fortaleza Bar e Bilhar, onde a discussão aconteceu, quanto o bar ao seu lado e a entrada do hotel tinham marcas de sangue na calçada e estavam interditados pela polícia. Os estabelecimentos ​reabriram no decorrer do dia.

Fora o dono do estacionamento, ninguém com quem a reportagem conversou disse ter presenciado o crime. "Ouvi apenas o comentário [sobre o crime]. É melhor não se envolver. Você entende, né?", diz o dono de um bar nas proximidades, que de acordo com ele já estava fechado durante a ocorrência.

Nem mesmo o funcionário do Fortaleza Bar e Bilhar afirma ter presenciado a cena. À Folha disse que era outra pessoa quem estava no momento, mas se negou a passar o contato ou mesmo o nome. "Ele já prestou depoimento à polícia", limitou-se a dizer.

A secretaria, na verdade, ainda não tinha colhido depoimentos àquela altura. Testemunhas foram ouvidas apenas nesta quarta (17). A pasta não passou mais detalhes sob o argumento de não prejudicar a investigação.

Na madrugada seguinte ao primeiro turno das eleições (8), o compositor e mestre de capoeira Moa do Katendê foi assassinado também por esfaqueamento em Salvador após ter defendido o voto em Fernando Haddad (PT). O agressor defendia o voto em Jair Bolsonaro (PSL).

Além dele, uma estudante de Porto Alegre disse que teve uma suástica riscada com objeto cortante em sua pele por três homens devido a usar uma camiseta contra Bolsonaro. Ela desistiu de fazer representação criminal, no entanto.

Em Pernambuco, uma servidora pública foi espancada após criticar o candidato do PSL. O candidato afirmou que dispensa o voto de quem pratica violência. ​

MEDO

Segundo Viviane Trindade, articuladora social do Centro de Cidadania LGBTI da prefeitura, os depoimentos de ameaças contra esse público cresceram durante o período eleitoral. "Aumentou muito. Há um discurso que está deixando as pessoas mais violentas, mais agressivas. Elas estão se sentindo empoderadas [para praticar a intolerância]."

"Tem tido relatos de intimidação até da força policial", afirma. "Passam com o carro e gritam 'se prepara que fulano vai entrar e a raça de vocês vai acabar'", diz.

Fundador da associação que organiza a parada LGBT, Nelson atribui a responsabilidade às declarações de Bolsonaro.

"Não adianta o candidato dizer 'Ah, mas eu não controlo'. Controla sim. Você é tão culpado [quanto], a sua mão vai estar lavada de sangue até o pescoço, porque com o seu discurso você abriu um precedente", diz. "E aí você não controla mesmo, porque é uma população que se sente representada por esse discurso."

Beneficiária do programa de capacitação da prefeitura, a travesti Paula Dionísio da Costa, 40, diz que o clima é de tensão. "Agora se a gente sai de casa não sabe se volta. Está todo mundo [da comunidade LGBT] um pouco com medo, qualquer descuido pode vir alguém para querer te agredir."

Nelson corrobora com a declaração dela. "Eu sou um gay, branco, cisgênero, que passo na rua como hétero. Se eu estou com medo, imagina quem transita com o gênero, quem é afeminado, quem é travesti."

O dono e gerente de um restaurante vizinho ao bar, no entanto, relativiza a questão de que isso possa estar relacionado à causa do crime. "Era uma travesti mesmo?", pergunta, para em seguida dizer "isso aí deve ter sido coisa de jogo."

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