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Aos 105, lúcida e ainda trabalhando, tia Cida dá receita de vida feliz

Agente de turismo organiza excursões de sua casa e acompanha os clientes em viagens

Apparecida Oliveira dos Santos, 105, que organiza excursões turísticas para a terceira idade - Jorge Araujo/Folhapress

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São Paulo

Surpresa com a pergunta sobre qual a receita para sua longevidade, tia Cida, como todos a chamam no mundo das agências de turismo, abre um sorriso meio envergonhado. “E eu sei?... Quando fui ver, cheguei nessa idade...“

Mas ela sabe, sim, como foi contando com calma, durante duas horas de conversa numa salinha dos fundos da casa onde mora com dois netos, no Tatuapé, faz mais de 50 anos. Cercada de telefones, cadernos e controles de televisão, continua trabalhando no que lhe dá prazer: organizar excursões de ônibus para pessoas da terceira idade.

A receita de Apparecida (ela faz questão dos dois “pe”) de Oliveira Santos, 105 anos, completados em agosto, é bem simples: só fazer o que gosta, comer o que tem vontade, conviver em paz com as pessoas e nunca deixar de sorrir, nem quando morre alguém da família —e muitos já se foram.

Seu segredo é o mesmo do célebre cardiologista Adib Jatene, que entrevistei anos atrás no programa Roda Viva, da TV Cultura.

Quando lhe perguntei se não tinha medo de morrer do coração de tanto trabalhar (ele era ministro da Saúde e continuava fazendo cirurgias e atendendo pacientes em seu consultório), Jatene me deu uma lição de vida, parecida com a de tia Cida, que nunca esqueci: “Trabalhar não mata ninguém. O que mata é a raiva. É você não poder fazer o que gosta e ser obrigado a fazer o que não gosta”.

Em sua simplicidade de menina criada na roça em Itapira, no interiorzão de São Paulo, a centenária agente de turismo também não se queixa do trabalho nem de nada na vida.

As coisas simplesmente foram acontecendo, desde que ela começou a trabalhar, com dez anos, na lavoura de café do pai, o carroceiro Felizardo, colono da fazenda da família Cintra. 

Felizardo e Maria Rosa, a mãe, morreram cedo, com 61 anos os dois, um no começo e outro no fim do mesmo ano.

A família tinha se mudado para São Paulo em 1926 e foi só então, já com 12 anos, que Cida conheceu uma escola. 

“Aí começou a luta...”, lembra ela como se estivesse contando a história de outra pessoa. Com o diploma do ginásio na mão, ela conseguiu uma bolsa de estudos para o curso técnico de turismo. Por que logo turismo? “Comecei a passear, gostava de viajar, aí achei que levava jeito...” 

Nomes, datas, viagens, ela não tem a menor dificuldade para lembrar. Vai narrando tudo sem tropeços e sem pedir ajuda. “Em 1948, o falecido Adhemar de Barros [ex-governador de São Paulo] me arranjou um emprego na Secretaria da Saúde. Trabalhava no laboratório, coletando material. Só me aposentei em 1979, depois de trabalhar lá 31 anos.”

Nesta época, Cida já fazia bicos como agente e guia de excursões para operadoras de turismo. “Pega aquele saco verde ali”, pede ela à neta Rita Rosa, 59 anos, que mora numa casa ao lado, e é sua companhia mais constante, junto com a cachorrinha Sol.  

Orgulhosa, mas com humildade, vai mostrando os troféus e as homenagens que recebeu ao longo desse tempo todo, cuidando das viagens dos outros. Em 2015, quando já tinha passado dos 100, Cida ganhou o prêmio de “Destaque de Vendas” da Pastore Turismo por ter lotado oito ônibus com 377 passageiros. 

Rita Rosa busca também um grande painel de lona de outra homenagem em que Cida ganhou o título de “Nossa Rainha do Turismo”, ornado com os versos de Caetano Veloso, como se tivessem sido feitos para ela:
"Linda
E sabe viver
Essa canção é só para dizer
E diz
Você é linda"

Para manter a beleza, a saúde e o alto astral, Apparecida nunca usou cremes, nunca seguiu dieta, adora uma feijoada “com muita farofa” e gosta de beber uma Malzbier, de vez em quando.

Não toma remédios, passa no médico apenas uma vez por ano  “para ver se está tudo bem”, compra comida na feira e só deixou de fazer suas caminhadas diárias quando a perna esquerda começou a falhar.

Mas ela não se queixa, até ri ao contar:  “A perna esquerda cansou. Do joelho para baixo, fica um vermelhão. Também, andando mais de 100 anos em duas pernas só, o que o senhor queria? Agora estou meio devagar, quase parando, mas não deixo a peteca cair...”

Usa a cadeira de rodas quando está em casa trabalhando, “caçando clientes” no telefone, “porque é mais confortável”, mas ainda sobe e desce as escadas do sobrado só com sua bengalinha, na boa. 

O mistério dessa longevidade sadia pode estar na alimentação nada ortodoxa. Come pouco arroz e feijão, muita verdura e frutas em geral, peixe uma vez por semana. Há 60 anos não toca em carne vermelha, mas nunca pode faltar seu prato predileto: pés, pescoços, asas e carcaças de frango no molho, uma recordação dos tempos da roça. “Tem muito colágeno, isso deve ser bom...”, explica. 

Tia Cida monta as excursões e até hoje vai junto, quando a viagem é curta. Já rodou pelo Brasil quase todo. Só para a Pousada do Rio Quente, em Goiás, já foi 12 vezes. Todo ano lota um ônibus para Aparecida no dia da padroeira. 

Já levou muita gente para Porto Seguro e Salvador, na Bahia, foi várias vezes a Brasília, mas seu forte agora é a região das estâncias hidrominerais paulistas (Serra Negra, Águas de Lindoia, Águas de São Pedro, Monte Sião). “O povo da terceira idade gosta muito”, constata, ela que já deve estar na quinta.

E qual foi o lugar mais bonito por onde já passou? “Rio de Janeiro”, responde, sem pensar duas vezes, mas logo acrescenta. “Agora não vou mais. Hoje o Rio está feio, muito perigoso”. 

No último réveillon, levou seis ônibus para conhecer a eclusa de Barra Bonita, no interior paulista, “onde o barco sobe e desce no elevador, uma beleza”. Passou cinco dias lá com a turma da excursão. 

Nos raros dias em que não está se sentindo muito bem, toma chás: de hortelã, boldo, erva cidreira, o que tiver. Não precisa de óculos para ler nem tem problemas de audição. 

Dos 19 filhos que sua mãe teve, “só cinco chegaram a crescer”. Dos seus três filhos com Laudelino, que morreu com 61 anos, apenas está vivo o caçula, que tem 72 anos. Conta nos dedos, lembrando os nomes, seis netos vivos e cinco bisnetos. Seu maior patrimônio é o cadernão onde anota os nomes dos seus clientes, com telefone e RG, usado para montar as excursões.

No fim da conversa, depois de posar para as fotos, sem dar sinal de cansaço, pede para “falar mais uma coisinha” e aconselha o repórter: “Sabe, não leve nada muito a sério. Não vale a pena brigar. Para viver nesse mundo grande, a gente tem que se dar bem com todos. Fique em paz”.

Erramos: o texto foi alterado

O nome da cidade no estado de São Paulo é Aparecida, e não Aparecida do Norte, pelo qual ficou popularmente conhecida na época da construção da Estrada de Ferro do Norte, no século 19. A informação foi corrigida.

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