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Descrição de chapéu Rio de Janeiro

Moradores carregam corpos e relatam danos psicológicos após ações da PM na Baixada Fluminense

Belford Roxo é palco de disputas entre tráfico e milícia, e operações persistem apesar de determinação contrária do STF

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Rio de Janeiro

Joana, 75, foi à rua resolver tarefas cotidianas, mas a violência que atravessa a vida na Baixada Fluminense a paralisou. Na praça, havia uma pilha de corpos, amarrados pelos pés. “Era como se fossem animais, parecia um monte de bicho”, contaria depois à filha, aos prantos.

Naquela terça-feira, 12 de janeiro, a Polícia Militar do Rio de Janeiro afirmou ter encontrado oito corpos em Belford Roxo, cidade a cerca de 30km da capital, palco de disputas entre facções do tráfico de drogas e grupos milicianos.

No dia anterior, teve início uma megaoperação da PM que, segundo moradores da região, avançou por fevereiro. A ação ocorre a despeito da decisão do STF (Supremo Tribunal Federal) que restringiu as operações no estado durante a pandemia do novo coronavírus.

Segundo a Polícia Militar, o objetivo é instalar um destacamento que contará com 125 agentes no Complexo do Roseiral, favela controlada pelo Comando Vermelho.

A corporação diz que não teve responsabilidade pela morte das vítimas, o que é questionado por quem vive no local e relata uma rotina de desaparecimentos e assassinatos na esteira da operação, com envolvimento de milícia.

Desde que viu os corpos na praça, Joana sofre com depressão e ansiedade. Segundo sua filha Helena, com quem a Folha conversou, a mãe agora entra em pânico quando cruza com um carro da Polícia Militar, por temer tiroteios. Ela conta que os efeitos psicológicos são comuns entre muitos moradores, que em janeiro mudaram suas rotinas com medo. A igreja que frequentava, por exemplo, está vazia.

Em nota, a Polícia Militar afirmou que os corpos das vítimas em Belford Roxo não foram encontrados durante as ações policiais. “Os corpos foram colocados nas ruas e a autoria das ações está sendo investigada pela Delegacia de Homicídios da Baixada Fluminense (DHBF)”, diz.

Sobre os relatos de violações de direitos humanos e assassinatos durante as operações, a PM respondeu que a Corregedoria Geral da Corporação disponibiliza canais para o recebimento das denúncias, com anonimato garantido.

A Polícia Civil não respondeu ao contato da reportagem, e o Ministério Público tampouco disse se abriu investigação a partir dessas denúncias.

A reportagem conversou com outros cinco moradores que narraram violações de direitos humanos na região desde o início da operação. Seus nomes foram trocados para evitar represálias.

Jéssica vive no Complexo do Roseiral e afirma que a polícia tem usado toucas ninja e matado pessoas já rendidas. Em seguida, segundo ela, os agentes obrigam os moradores a retirar os corpos. Um vídeo recebido pela IDMJR (Iniciativa Direito à Memória e Justiça Racial), instituição atuante na Baixada, mostra os corpos sendo levados em uma carroça.

Ela conta que policiais espancaram, amarraram e atiraram contra o filho de uma amiga, que não tinha envolvimento com o tráfico. “Não podem ver um menino preto jogando bola, maiorzinho, que já chegam atirando”, diz.

Jéssica afirma que a rotina da comunidade mudou drasticamente. De acordo com ela, quem mora em casas alugadas está deixando a favela, enquanto quem sai para trabalhar de madrugada passa correndo para não ser enquadrado.

Eduardo é um dos que evitam sair mesmo até o portão —ele encontrou um corpo esquartejado ao lado de sua casa, há um mês.

Bruna e João, adolescentes de 17 anos, estão abalados porque perderam um amigo envolvido com o tráfico. Não frequentam a rua na madrugada e adotaram outras precauções. A mãe do namorado de Bruna, por exemplo, pediu a ela que não o deixasse sair tarde de sua casa. “Meu namorado é negro, jovem, tudo o que eles gostam”, afirma.

Débora também viu os corpos expostos na praça e diz que ficou atônita. “A gente sabe que mora numa região violenta, mas nunca tinha visto isso. Me deixou muito mexida.”

Após receber uma série de relatos semelhantes, acompanhados de fotos e vídeos, a IDMJR protocolou ao fim de janeiro um informe para a ONU (Organização das Nações Unidas) e a OEA (Organização dos Estados Americanos). A partir das denúncias, a iniciativa contabiliza que mais de vinte pessoas foram assassinadas na região desde o início da ação da PM.

A continuidade das operações, em desrespeito à determinação do Supremo, levou o ministro Edson Fachin a ordenar o estado do Rio de Janeiro a apresentar motivos que justifiquem as ações.

O próximo passo será a realização de audiências públicas para ouvir a Polícia Militar e os movimentos sociais que participam da ADPF, com o objetivo de coletar informações para construir um plano de redução da letalidade policial e auxiliar na definição de procedimentos de fiscalização da atuação das polícias.

Com a decisão do Supremo em vigor, a Baixada Fluminense tem representado uma parcela importante nas mortes por intervenção do estado.

Em outubro do ano passado, segundo o ISP (Instituto de Segurança Pública), a região voltou a superar a capital no número de mortes por policiais. Os dados foram organizados pelo Geni (Grupo de Estudos dos Novos Ilegalismos) da UFF (Universidade Federal Fluminense).

Com base em informações da imprensa e de redes sociais, o grupo também concluiu que a principal motivação das operações que terminaram em mortes na Baixada mudou. Se nos anos anteriores era a repressão ao tráfico, em 2020 passou a ser a disputa entre grupos criminosos.

A Folha questionou a Polícia Militar e o Ministério Público a respeito das operações realizadas desde a decisão do Supremo, mas não obteve resposta. Tampouco foi respondido quais municípios concentraram mais ações.

A IDMJR calcula, a partir de dados do Twitter da Pmerj, redes sociais e denúncias recebidas no canal de Whatsapp da iniciativa, que Belford Roxo foi a cidade da Baixada com mais operações no período: 91 desde junho do ano passado. Em seguida aparece Duque de Caxias, com 86 operações.

As duas cidades são citadas pelo sociólogo José Cláudio Alves, que estuda as milícias há 20 anos, como eixos de recrudescimento da violência a partir de disputas entre o tráfico de drogas e grupos paramilitares.

Ele afirma que a criação do destacamento do 39º BPM faz parte de uma política de confronto direto e enfraquecimento do Comando Vermelho, o que resulta no fortalecimento das milícias.

“Há uma lógica de extermínio que vai fortalecer a consolidação dos projetos milicianos. Tanto em Caxias quanto em Belford Roxo existe uma estrutura política de extrema direita, dois prefeitos que se reelegeram na plataforma política do ‘bandido bom é bandido morto’”, diz.

Ele também lembra que a Baixada Fluminense é um espaço de reconfiguração onde o tráfico e a milícia estabelecem boa parte de seus negócios, como a venda de imóveis ilegais, da água, do gás, e de transportes clandestinos.

As disputas na região, afirma o sociólogo, ganham menos visibilidade do que na capital porque a resposta da sociedade civil é mais fraca. “São comunidades submetidas ao medo e não há uma prática de denúncia, de exposição, até porque o preço da exposição é muito mais alto. Na Baixada o domínio das milícias é muito mais antigo, consolidado, com políticos diretamente vinculados a eles.”

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