Siga a folha

Ele me prometeu doces, diz doméstica que move ação contra Samuel Klein

Em ação já rejeitada em duas instâncias, fundador das Casas Bahia é acusado de estupro

Continue lendo com acesso ilimitado.
Aproveite esta oferta especial:

Oferta Exclusiva

6 meses por R$ 1,90/mês

SOMENTE ESSA SEMANA

ASSINE A FOLHA

Cancele quando quiser

Notícias no momento em que acontecem, newsletters exclusivas e mais de 200 colunas e blogs.
Apoie o jornalismo profissional.

São Paulo

A doméstica Naiara (nome fictício), 37, é autora de uma ação por danos morais e materiais contra o espólio de Samuel Klein, que morreu aos 91 anos em 2014. Dois anos antes, ela se juntou a um grupo de jovens para entrar na Justiça em busca de reparação, ao alegarem terem sido vítimas de abuso e exploração sexual na infância e adolescência por parte do empresário.

Por duas vezes, a Justiça já considerou improcedente a ação da doméstica.

Ela diz que, aos 11 anos, teria sido apresentada por uma prima também adolescente ao “tio das Casas Bahia”.

Com o cabelo preso em um rabo de cavalo, nariz arrebitado e de moletom, ela aparenta menos idade, atrativo que, segundo ela, a fez uma das “favoritas” do “Rei de Varejo” em sua pré-adolescência.

Moradora de São Vicente, na Baixada Santista, casada e mãe de dois filhos, um de 23 e outro de 2 anos, ela concordou em falar com a Folha, apresentando-se como Naiara publicamente para proteger sua identidade. “Só meu marido sabe de tudo.”

Neste ano, outros relatos e denúncias sobre o caso foram publicados. Em abril, a Pública colocou no ar a longa reportagem 'As acusações não reveladas de crimes sexuais de Samuel Klein', com detalhes de acusações contra Samuel. O UOL, por sua vez, trouxe novos relatos de mulheres que acusam Saul Klein, filho de Samuel, de estupro —mais de 30 denúncias contra ele estão sendo investigadas pelo Ministério Público de São Paulo (MP-SP).

Leia a seguir o relato de Naiara:

“É um passado que eu não queria relembrar. Criança sempre sonha com tudo: um celular, um tênis, uma roupa bonita nova, passear. Novidades que nunca tinha tido, como andar de lancha, de helicóptero. Isso era legal.

A minha mãe trabalhava como doméstica e eu e meus cinco irmãos fomos criados pelos meus avós. Minha avó recebia o pagamento da aposentadoria em São Caetano do Sul, onde moravam outros parentes.

Eu ficava feliz quando ia com ela pra casa da minha tia e das minhas primas. Elas já frequentavam as Casas Bahia no centro e contavam as histórias. Um dia, me chamavam para ir junto.

O que eu mais queria era uma bicicleta. E foi por aí que ele me pegou. Elas falaram: ‘Vamos lá que o tio das Casas Bahia te dá’. Foi assim que conheci Samuel Klein.

Um taxista foi buscar a gente num lugar combinado. Eu tinha 11 anos. A mais nova tinha 10 e a mais velha, 16. Era ela que ia levando as menores.

Quando chegava lá, uma mulher induzia (sic) a gente até um escritório, onde tinha um quartinho reservado, com uma maca no fundo. Tinha também bonecas, brinquedos. Parecia uma brinquedoteca. Ele falou pra mim: ‘O titio vai dar pra você a bicicleta’.

Minha prima tinha falado pra ele o que eu queria. Daqui a pouco, ele entrou com uma bike roxa com cestinha. Pequena. Do meu tamanho.

Fiquei super feliz. Eu me assustei quando vi que era um velho. Mas ele tinha uma lábia grande para seduzir as crianças. ‘Vem cá, o titio vai te dar um doce’, ele dizia.

Só não sabia direito o que ele ia fazer depois. Até que o velho pediu pra gente mostrar o corpo. Achei estranho, mas acabei fazendo. Tava todo mundo rindo, brincando.

Desde os meus 9 anos, eu tinha um corpinho de moça. Menstruei nessa idade. Já tinha peitinho. O tio cresceu o olho. Ele escolhia as meninas que queria. Não era qualquer criança. Tinha filas.

Depois de ir no escritório, ele escolhia as preferidas, que eram convidadas para as festas na casa dele no Guarujá e em Angra.

Cheguei a ir em três festas. Ele não gostava de meninas que tivessem cicatrizes ou manchas, dizia que tinha nojo. Pegava as perfeitas. Também era muito racista. Não gostava de negras.

Eu tinha cabelos encaracolados. Ele falava, seus cachinhos parecem cabelo de anjo. Passava a mão nos meus cabelos. Pediu para ver meus peitos, para eu tirar a roupa. Era horrível.

Saí das Casas Bahia com minha bicicleta, que coube no porta malas do táxi. A gente enrolava os adultos dizendo que ia tomar um sorvete.

Eu não sabia o que ia dizer quando chegasse com o presente em casa. Minha prima mais velha mentiu dizendo que ganhei de uma vizinha. O mesmo que eu disse pra minha avó e minha mãe.

Depois dessa primeira vez, o tio mandou me buscar para ir para a casa dele no Guarujá. Era quando ele queria, dia de semana, fim de semana. Faltava na escola. Dizia que ia pra aula e ia escondido pra a casa dele.

Eu frequentei as festas, passeei de lancha com ele. Eu só queria pular na água. Ficar na piscina. Não sabia nadar. As outras meninas diziam: ‘Joga boia pra essa idiota, ela vai se afogar’. Tinha até salva-vidas na piscina. E menina ainda mais nova do que eu.

Quando chegava para as festas, lá tinha um monte de biquínis e fantasias de bailarina, de princesa. Era muito estranho, mas a gente gostava. Escolhia uma para vestir e ficava dançando, brincando.

Ali mesmo aconteciam as orgias. Era horrível. Comecei a perceber que não era uma festa de criança, mesmo tendo guaraná, bastante doce e chocolate. Tinha também bebida alcoólica, champanhe, uns rapazes fazendo drinks.

Tinha um palco onde todas as meninas ficavam andando como se fosse um desfile. Ele ia escolhendo. As escolhidas iam para outra fila e eram levadas para o quarto dele. Ia entrando uma de cada vez.

Como ele já tinha uma idade avançada, uma enfermeira participava das festas. Aquela mulher vestida de branco via tudo e dava uma injeção nele.

Eu fui vendo outras meninas tendo relação sexual com o tio e pensava: ‘Meu Deus, vai chegar minha vez’.
Aí eu lembrava da bicicleta e do que ele prometia: celular, passeio de lancha e helicóptero. Ele jogava dinheiro na gente, colocava notas no bolso.

Lembrar disso tudo é horrível. Mas eu só caía na real quando chegava em casa. Ia tomar banho e chorava sozinha. Eu me sentia muito suja. Ficava uma hora debaixo do chuveiro. Para tirar aquela sujeira de mim.

Na terceira festa, ele fez sexo comigo. Considero um estupro. Eu era criança, não tinha consentimento. Se alguém falasse para parar, ele não ia parar. A gente já estava ali dentro, não tinha como fugir. Só depois de consumado o ato. Tinha horário para o taxista vir buscar a gente e levar de volta. Como ir embora antes? Para onde? Tinha seguranças.

Depois de perder a virgindade em uma das festas na casa do Guarujá, eu não voltei mais. Vi que era errado. Peguei nojo. Joguei a bicicleta fora. Entendi o que eu tinha de fazer para ganhar aquilo.

Nunca contei isso pra minha família. Eu me apeguei ao meu melhor amigo, que cresceu no mesmo bairro. Ele tinha 17 anos. E eu, 12, na época que acabei contando tudo. Ele me disse que eu era louca de fazer aquilo, que era um dinheiro sujo. Eu nem sabia direito os valores. Era uma menina. Era um monte de notas. Colocava no bolso e levava embora pra casa.

Lembro que peguei o dinheiro guardado e comprei um monte de doce, pipoca, guaraná pra todos os meus amiguinhos da rua. Comprei até hot-dog. Contei que meu pai apareceu e me deu dinheiro. Inventei um pai, pois eu não conheci o meu.

Meu amigo virou um ombro amigo e depois, meu namorado. Quando começamos a ficar juntos, fiquei assustada. Eu vou passar por aquilo de novo? Vou ficar suja de novo.

Estamos juntos até hoje. É o meu marido e pai dos meus dois filhos. O mais velho tem 23 anos. Eu fui mãe com 14 anos. Aceleraram minha mente pra maturidade. Eu achei que se eu casasse ia ficar segura. Tinha alguém do meu lado para me proteger.

Não amamentei meu filho. Achava que estaria sujando meu bebê se desse meu peito pra ele. Ele mamou na mamadeira. Minha sogra brigava comigo. Isso foi muito ruim para mim e para o meu filho que precisava do meu leite.

Eu dizia que meu peito estava machucado, uma desculpa pra não amamentar. O velho gostava muito de fazer isso, então eu fiquei com nojo. Até hoje tenho trauma, meu marido não pode encostar no meu peito.

Samuel Klein foi um monstro na minha vida. Que Deus conforte o coração da família dele, que vai continuar carregando esse sobrenome podre dele. Não gosto nem de passar em frente às Casas Bahia.

Meu refúgio foi meu filho. Arrumei um trabalho, entrei para a igreja. Sou da Assembleia de Deus. E me apeguei em Deus.

Não me culpo mais. Eu era uma criança. Eu falo com as minhas primas, mas ficamos mais distantes. Elas também eram crianças. Não são culpadas. Sofreram as consequências. Uma delas se envolveu com drogas. Meu tio ficou sabendo, o que mexeu muito com a mente dele. Eram as três princesas dele.

Elas ficaram anos na dependência do velho. Mas quem sou eu para julgar alguém. Elas foram as primeiras a entrar na Justiça. Pediram para eu fazer o mesmo. Só fui ter coragem depois. Elas deram força pra outras vítimas.

Ele já morreu, mas o que fez não se apaga na nossa memória. Se a Justiça reparar esse erro dele, eu vou doar o dinheiro. Vou ajudar crianças para que não precisem ter um ‘tio’ desses na vida. Tem muitas crianças passando necessidade e é onde esse povo se aproveita.

Ele conseguiu abafar tudo por muito tempo. Dinheiro compra tudo. Até os funcionários dele. Com o escândalo agora, está voltando tudo à tona. Tem muito jornalista atrás de mim. Mas eu não quero falar com mais ninguém. Isso me traz lembranças ruins.

Só tive coragem de contar e abrir o processo depois de ver outras fazerem o mesmo. Sou uma empregada doméstica, casada com um motoboy, sempre tive medo de mexer com uma pessoa tão poderosa.

Defesa diz que acusação é lamentável

O empresário Samuel Klein, fundador da rede Casas Bahia. - Janete Longo/Folhapress

A ação de Naiara foi julgada improcedente na primeira e na segunda instância. Um último recurso está para ser julgado no Superior Tribunal de Justiça. Além de ter sido ajuizada depois do prazo de prescrição com a consequente perda do direito de ação, a tese de incapacidade parcial da vítima não foi aceita nos tribunais inferiores.

A defesa do espólio de Samuel Klein expõe a trajetória do réu “de sobrevivente de um campo de concentração nazista a empreendedor de sucesso”.

“É lamentável que a autora não hesite em conspurcar a memória de um empresário aplaudido em todo o país.”

E conclui que se os fatos fossem verídicos a suposta vítima não teria levado tanto tempo para procurar a Justiça, segundo os advogados, tentativa de enriquecimento ilícito e litigância de má fé.

Nenhum representante do escritório Faria Advogados e Consultores de Empresas, representante legal do espólio de Klein, quis se manifestar.

Por meio de nota, Michael Klein, filho e inventariante de Samuel Klein, disse: “na condição de inventariante, recebi a informação sobre essas denúncias com perplexidade e tristeza. Infelizmente, Samuel Klein não está aqui para se defender. Em relação ao processo, corre em segredo de Justiça pela privacidade das partes envolvidas. Por esse motivo não posso me pronunciar sobre o caso. Toda e qualquer questão judicial será naturalmente apreciada pelo Poder Judiciário e suas decisões finais respeitosamente acatadas.

Receba notícias da Folha

Cadastre-se e escolha quais newsletters gostaria de receber

Ativar newsletters

Relacionadas