Descrição de chapéu

Sobre o silêncio dos bons

Não importa como uma menina vulnerável se comporta ante a exploração, e sim como o adulto age

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Li e reli a reportagem extremamente bem feita pela Pública, agência de jornalismo investigativo independente e sem fins lucrativos, sobre décadas de exploração sexual perpetrada pelo empresário Samuel Klein, que ensinou o “modus operandi” ao filho Saul, que, por sua vez, seguiu a cartilha do pai.

A matéria é para quem tem estômago, sobretudo se você se propõe a assistir ao vídeo.

Confesso que não conhecia muito sobre o empresário, salvo a história de que ele era vendedor ambulante e construiu um império. Na reportagem soube que ele era polonês e viveu a ocupação nazista, tendo perdido sua mãe e cinco irmãos assassinados em um campo de concentração, do qual conseguiu fugir.

Emigrou para o Brasil em 1950, e o resto da história eu já tinha ouvido, partiu do nada e fundou as Casas Bahia.

A matéria mostra um homem horroroso, que pagava para fazer sexo com meninas muito novas. Uma pessoa claramente perversa que utilizava de seu poder econômico para humilhar e subjugar meninas e mulheres.

Enquanto lia, não podia deixar de pensar em quem era esse sujeito, que muito jovem perdeu a mãe e cinco irmãos em um campo de concentração. O que será que ele passou? Será que foi abusado? Será que ele teria sido uma pessoa diferente se não tivesse tido essa experiência de sofrimento extrema?

Não, não estou tentando justificar o que ele fez. Não é justificável sob nenhum aspecto. É criminoso e é nojento. Mas não posso negar que a informação sobre sua infância (que é dada em um parágrafo, sem maior importância) me perturbou.

Só não me perturbou mais do que a percepção que fui tendo, ao longo da leitura, do número de pessoas que tinham conhecimento dessa prática e que nada faziam a respeito. Seguranças, motoristas, funcionárias das lojas, pilotos do helicóptero, marinheiro da lancha, porteiros dos prédios.... Enfim, uma infinidade de pessoas que sabiam do que acontecia e pareciam não se importar.

Li também sobre os acordos judiciais celebrados para calar as vítimas e dos inquéritos policiais que não prosperavam. Isso sem falar dos vizinhos que, tal como descrito na reportagem, presenciavam a fila de meninas que se formava na porta do prédio e que gerava tamanho desconforto que acabaram por expulsá-lo do condomínio.

Não pude evitar de me lembrar da frase de Martin Luther King: “O que me preocupa não é o grito dos maus. É o silêncio dos bons”. Como presidente do Instituto Liberta, de enfrentamento a exploração sexual de crianças e adolescentes no Brasil, sabemos da enorme naturalização e invisibilidade desses crimes.

Falamos sempre da diferença de tratamento dado pela sociedade para os casos de abuso (estupro de vulnerável) e para os casos da chamada prostituição infantil (exploração sexual). No primeiro caso a violência é normalmente intrafamiliar (mais de 70% das ocorrências acontecem dentro de casa, segundo dados do Ministério da Saúde) e por isso é muito silencioso e silenciado.

No segundo caso, a exploração se dá nas ruas, muitas vezes à luz do dia, mas não recebe atenção maior das pessoas. Mesmo quando se trata de meninas muito pequenas, com 9 ou 12 anos de idade, como narrado na matéria.

E por quê? Porque a menina está lá porque ela quer. É isso que as pessoas pensam sobre a vítima da exploração sexual e que acabam confirmando quando leem sobre o assunto.

Neste caso específico, causa estranheza e um certo desconforto que as vítimas narrem a violência e, em seguida, as diversas vezes nas quais voltaram para viver a mesma situação e receber mais benefícios. É quase como se o comportamento da vítima excluísse a culpa do explorador.

Precisamos entender que não importa como uma menina altamente vulnerável (econômica e psicologicamente falando) se comporta em uma situação de exploração. Interessa como o adulto se comporta. É isso que diz o nosso Código Penal, ao estabelecer que a exploração sexual de crianças e adolescentes é crime.

Precisamos mudar a forma como a sociedade brasileira lida com a violência sexual, contra meninas e mulheres, e quebrar esse silêncio nefasto que perpetua casos como do Samuel Klein, João de Deus e tantos outros. Já passou da hora de falarmos sobre violência sexual

Luciana Temer

Advogada, professora da Faculdade de Direito da PUC-SP e presidente do Instituto Liberta

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