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Jovem de 24 anos será a primeira brasileira na Copa do Mundo de xadrez

Como protagonista de 'O Gambito da Rainha', Julia Alboredo busca espaço em esporte eminentemente masculino

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Rio de Janeiro

Quando Julia Alboredo olha ao redor, raramente encontra alguém parecido com ela. A maioria dos que se sentam à sua frente ou ao seu lado são homens, por isso é tão fácil se espelhar na protagonista do livro e da aclamada série “O Gambito da Rainha”, da Netflix.

Assim como a jovem fictícia Beth Harmon, Julia vai enfrentar, aos seus 24 anos, a partir da próxima segunda (12), um dos maiores torneios globais de xadrez: a Copa do Mundo feminina, na Rússia. E será a primeira brasileira a fazer isso.

“Geralmente você é a única, e isso incomoda. O número de praticantes homens e mulheres é incomparável. Vejo muitas meninas parando quando entram na faculdade ou porque ficaram grávidas”, diz ela, sentada em sua cadeira gamer. A parede do quarto é rosa, a voz é doce e o riso, tímido.

Além de quebrar tabus, participar da competição será um jeito de dar visibilidade ao esporte em um país que quase não percebeu quando um jovem do interior paulista venceu o melhor enxadrista do mundo. Luis Paulo Supi, 23, surpreendeu o norueguês Magnus Carlsen, 30, em um amistoso online no ano passado.

“Os brasileiros acham que só pessoas velhas ou com certa inteligência podem jogar, mas é um esporte que é para todos. Não diferencia gênero, idade nem condições físicas”, afirma a atleta, com sotaque de Jandira, município de São Paulo onde mora com a família.

No xadrez, não há torneios apenas masculinos. As mulheres podem se inscrever tanto na categoria “absoluta” quanto na feminina. Normalmente se começa ainda criança e o auge chega por volta dos 30 anos, já que o desgaste mental é exaustivo e um jogo pode chegar a seis horas com mínima alimentação.

À semelhança da vivida pela personagem da série, a história de Julia no jogo começa com um mentor. Em vez do zelador do orfanato, essa figura é seu pai. O administrador e enxadrista amador Ricardo Alboredo, 60, foi quem introduziu a ela o movimento das peças.

Matriculou a filha no Colégio Albert Sabin, na zona oeste paulistana, onde começou a aperfeiçoar a técnica aos seis anos de idade. Aos nove, foi descoberta por um treinador, mas continuou colocando o xadrez na mesma caixinha de “hobbies” do futebol e do piano.

Só depois do ensino médio e de alguns torneios passou a ver a atividade como escolha de vida. “Por que não?”, perguntou-se. Desde então, acumulou diversos campeonatos escolares, universitários, nacionais e mundiais, incluindo três Olimpíadas da modalidade.

Hoje, Julia divide as quatro horas diárias de treino com o trabalho em uma empresa que transmite partidas e a faculdade à noite. Cursa no Mackenzie o último ano de química —que, segundo ela, tem em comum com o esporte as infinitas possibilidades e combinações.

A beleza do xadrez está em encontrar planos, diz. E isso jamais poderá ser feito por um computador. A máquina é usada para simular as partidas nos treinos e equivale ao doping nas competições, por isso existem medidas “anti-cheating” (antitrapaça) tanto nos jogos online como nos presenciais.

“As máquinas não têm ideias muito profundas, são muito concretas. Já o ser humano pensa a longo prazo”, devaneia. “O computador gosta do cavalo ali, mas e se eu pensar num plano em que meu cavalo vai estar melhor daqui a 15 jogadas? Isso é o mais difícil de se fazer: planejar.”

Ela ccabou levando o método para a vida. Tudo o que quer comprar coloca em uma planilha. Arquiteta os planos com antecedência e preza pela organização, principalmente da sua própria agenda. Mas também permite certa folga para o que é incalculável.

“Sempre deixei a vida levar um pouco. Gosto muito de química, mas jogar torneios também me anima. Por enquanto, sigo mais no xadrez, e não sei se quero morar fora. A faculdade foi um plano B, para ter mais uma opção se eu ficar na bad com o xadrez”, especula.

“Tem uma fama de que jogadores muito bons ficam meio loucos, não quero ficar assim, não”, brinca, relembrando o caso do norte-americano prodígio Bobby Fischer (1943-2008), que passou anos recluso e foi uma das inspirações para a protagonista de “O Gambito da Rainha”.

Como muitos enxadristas, ela também tem mania de imaginar as peças se movendo no teto ou no chão. “Mas a gente não precisa de pílula como a Beth”, diz, rindo, em referência às cenas em que a menina toma tranquilizantes e começa a delirar em um tabuleiro imaginário.

A poucos dias de embarcar, Julia já sentia a adrenalina do mata-mata que enfrentará em Sóchi, na Rússia. Nem ela parece acreditar que chegou até ali.

Atual vice-campeã brasileira, foi indicada para a Copa há cerca de um mês pela Confederação Brasileira de Xadrez —a hexacampeã Juliana Terao, 29, declinou do convite por motivos pessoais. Vai começar encarando a polonesa Jolanta Zawadzka, 34.

O esporte é regido pelo chamado “rating” da Fide (Federação Internacional de Xadrez), um sistema de pontos que ranqueia os atletas. Com 2.182 pontos, Julia está em 10.484º lugar no mundo. Já a adversária acumula 2.403 pontos e sustenta a 2.072ª posição.

Apesar da diferença, ambas estão entre as poucas na elite da modalidade. O abismo entre homens e mulheres se reflete, por exemplo, na quantidade global de enxadristas com o mais alto título de Grande Mestre: só 38 jogadoras (nenhuma brasileira), contra 1.694 jogadores (14 brasileiros).

Para tentar atenuar essa ribanceira, ela e algumas amigas fundaram em 2018 o projeto "Damas em Ação: Rumo à Maestria", no qual dão aulas online gratuitas a mais de 20 meninas de todo o país e as incentivam a participar de competições.

Também fazem vaquinhas para viagens e torneios, que chegam a custar mais de R$ 10 mil e muitas vezes são confirmados em cima da hora. Julia só poderá ir à Copa, por exemplo, porque recebeu ajuda da Prefeitura de Osasco, cidade da sua família. “Senão seria outra brasileira indicada que não conseguiu ir”, diz.

O xadrez, afirma, ensina que é preciso ter sempre ideias novas para não ser supreendida pelo oponente. Julia, portanto, acostumou-se a surpreender.

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