Contardo Calligaris

Psicanalista, autor de 'Hello Brasil!' (Três Estrelas), 'Cartas a um Jovem Terapeuta' (Planeta) e 'Coisa de Menina?', com Maria Homem (Papirus). Morreu em 2021.

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Contardo Calligaris

Não é necessário jogar xadrez para apreciar 'O Gambito da Rainha'

É raro uma obra me fazer sorrir sem renunciar a nada do que faz da vida uma experiência fundamentalmente trágica

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Não posso dizer que jogo xadrez. Conheço as regras e sei movimentar as peças. E talvez, diante de um jogador médio, eu consiga resistir por aquele número mínimo de mexidas para não ser ridiculizado.

Não sei se existe esse número mínimo, mas eu imagino que seja 20. Enfim, jogar é outra coisa.

Por sorte, houve um outro jogo que me ocupou, por quatro ou cinco anos da minha vida, de uma forma devorante e quase exclusiva: o bridge.

Estudava e jogava bridge a cada instante possível.

Ilustração da carta de baralho Rei de Ouros sendo cortada ao meio. Há sangue saindo do corte e a figura do rei cospe sangue
Luciano Salles/Folhapress

E não me pareceria estranho imaginar que, como ocorre com a protagonista do "Gambito", levantando o olhar para o teto, eu enxergasse o tapete verde e as cartas, se movimentando.

Minha paixão terminou com uma escolha que se impunha como inevitável: eu poderia desistir de minha formação e profissão e me tornaria bridgista profissional ou, então, desistiria do bridge. Foi o que eu fiz.

O bridge e o xadrez têm uma caraterística comum (e crucial): são jogos para os quais o acaso é indiferente.

No caso do xadrez, a coisa é óbvia: você se senta diante do tabuleiro, por assim dizer, zerado e constrói ou destrói suas chances de vitória ou derrota —do zero.

É por isso que inúmeros livros são dedicados às diferentes fases do jogo, das aberturas às conclusões.

O gambito da rainha, aliás, é uma abertura de ambos os campos com o peão da rainha; as brancas seguem com o peão do bispo em C4 e convidam assim as pretas a comê-lo. Nada muito dramático, em si. Tudo depende de como a coisa segue.

No que toca ao bridge, a ideia de que o jogo possa abolir o acaso pode parecer mais estranha. Afinal, no bridge, como em todos os jogos de cartas, as cartas são distribuídas —ao acaso, não é? Sim, e não.

Brincar com o acaso e com a sorte só acontece na prática caseira do bridge, quando quatro amigos se encontram e jogam. Fora essas situações, o bridge sempre consiste num (pequeno ou grande) torneio em que cada casal de parceiros joga todas as mãos distribuídas pelo acaso naquele dia ou noite, e ganha o casal que jogou melhor o conjunto dessas mãos.

"The Queen's Gambit", ou "O Gambito da Rainha", é também uma extraordinária minissérie de sete episódios, de Scott Frank e Allan Scott, na Netflix desde o fim de outubro.

Não é necessário jogar xadrez para entender e apreciar. Basta dizer que Frank e Scott conseguiram milagrosamente nos transmitir toda a dramaticidade do jogo de xadrez sem que a história nunca embarrigasse nos meandros e nas complexidades de uma partida.

Em 1995, em Nova York, nos dias de semana, eu quase sempre jogava uma ou duas partidas de manhã, enquanto meu filho estava na escola.

Sempre havia um jogador ou outro que montava sua mesa e seu tabuleiro e pedia US$ 2 para jogar (é claro, se eu ganhasse, ele pagaria, mas isso nunca acontecia).

Mais tarde, quando meu filho voltou a Nova York para seu mestrado, sei que ele jogava em Washington Square, e o preço era US$ 5. Mas ele, algumas vezes, ganhava.

Jogar contra desconhecidos confere ao jogo uma radicalidade que sempre passa despercebida quando jogamos com amigos e parentes.

É um pouco como a diferença entre boxear com os parceiros de treino do nosso ginásio e, digamos, boxear de verdade.

O "de verdade" concerne tanto à crueldade necessária para o ataque quanto à dor sofrida na derrota.

Ao longo dos meus 40 anos de clínica, só fui analista de um grande mestre de xadrez.

E ele decidira se analisar por razões que não tinham muito a ver com o jogo dele. Agora, lembro que, quando ele perdia, passávamos semanas reunindo os cacos de um desastre que ele nunca deixava transparecer fora do meu consultório.

Não sei se consegui sugerir ao leitor que não deixe de ver "O Gambito da Rainha". Alguns acharam interessante a desconstrução do machismo do mundo do xadrez.

Outros acharam interessante a luta da protagonista contra os seus próprios demônios.

Quanto a mim, se tivesse que resumir numa frase o que torna a série inesquecível, diria assim: é raro, muito raro, que uma obra me leve a sorrir para a vida sem renunciar a nada (e sem esconder nada) do que faz da vida uma experiência fundamentalmente trágica.

E as últimas palavras da protagonista vão me acompanhar (e me convidar) por muito tempo. "Vamos jogar um pouco?"

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