Descrição de chapéu Maratona

Como 'O Gambito da Rainha' deu início a um novo debate sobre sexismo no xadrez

Sucesso da Netflix captura as dificuldades das mulheres no jogo, no qual é raro que elas se tornem grandes mestres

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Dylan Loeb McClain
The New York Times

Judit Polgar talvez seja a única mulher do planeta que sabe como Beth, a heroína da série “O Gambito da Rainha”, da Netflix, realmente se sente. Como Beth, Polgar, nascida na Hungria, se destacou em sua carreira por derrotar regularmente os melhores jogadores de xadrez do planeta, entre os quais Garry Kasparov quando ele liderava o ranking mundial, em 2002.

Polgar, a única mulher a ter sido classificada entre os dez primeiros do ranking mundial do xadrez e a disputar o título mundial do esporte, deixou o xadrez competitivo em 2014. Ao assistir à série, que ela descreve como “um desempenho incrível”, sua sensação foi de “déjà-vu”, especialmente nos episódios finais.

Mas há um aspecto sobre o qual ela não se identificou com a experiência de Beth –a maneira pela qual seus adversários homens a tratam.

“Eles são gentis demais com ela”, disse Polgar. Quando ela estava galgando o ranking mundial e provando sua competitividade, Polgar disse que era comum que homens fizessem comentários desdenhosos sobre sua capacidade e às vezes soltassem gracejos que eles achavam engraçados mas eram na verdade dolorosos.

E ninguém jamais admitiu derrota para ela como Shapkin faz diante de Beth no sétimo episódio, levando a mão dela até perto dos lábios, como que para um beijo, e com uma mesura.

“Havia adversários que se recusavam a apertar minha mão”, Polgar recorda. “Um deles bateu com a cabeça no tabuleiro depois de perder.”

Nem todas as mulheres tiveram experiências negativas. Irina Krush, que venceu seu oitavo título do campeonato nacional de xadrez feminino dos Estados Unidos no mês passado, disse sentir que a comunidade do xadrez, e especialmente os homens, foi muito prestativa com ela no começo de sua carreira. Ela disse, sobre a série, que “o espírito daquilo que eles estão mostrando se enquadra à minha experiência”.

Quer o que acontece com Beth seja realista, quer não, a popularidade de “O Gambito da Rainha” voltou a inspirar debate sobre desigualdade e sexismo no xadrez e o que deve ser feito a respeito, se é que fazer alguma coisa é possível.

Ainda que o xadrez pareça uma área em que homens e mulheres deveriam competir em condições de igualdade, historicamente não muitas mulheres o fizeram.

Entre os mais de 1.700 grandes mestres reconhecidos oficialmente em todo o mundo, há apenas 37 mulheres —entre as quais Polgar e Krush. No momento, existe só uma mulher entre os cem melhores enxadristas do planeta, a chinesa Hou Yifan, que ocupa o 88º posto, e ela não vinha jogando com frequência, mesmo antes da pandemia.

A superioridade dos homens no xadrez está tão bem estabelecida que as melhores enxadristas a admitem livremente. Numa recente edição da revista Mint, num artigo intitulado “Por Que as Mulheres Perdem no Xadrez”, Koneru Humpy, enxadrista indiana que ocupa a terceira posição no ranking feminino do esporte, afirmou que os homens simplesmente jogam melhor. “Isso está provado”, ela disse. “É preciso aceitar o fato.”

A escassez de mulheres nos escalões mais elevados do jogo é um dos motivos para que existam torneios femininos separados, entre os quais um campeonato mundial; a Federação Mundial de Xadrez chegou a criar títulos exclusivos para mulheres, como o de grande mestra.

Ver esse status de segunda classe institucionalizado pode parecer uma má ideia, mas não de acordo com Anastasiya Karlovich, grande mestra de xadrez que foi assessora de imprensa da Federação Mundial de Xadrez por diversos anos. Ela disse que os títulos reservados a mulheres permitem que mais jogadoras ganhem a vida como enxadristas profissionais, o que amplia a participação delas no jogo.

Karlovich disse que a série da Netflix a ajudou indiretamente –fez com que os pais de seus alunos de xadrez a vissem de modo diferente. “Eles têm mais respeito por mim. Compreendem melhor a vida de um enxadrista”, ela disse.

Embora alguns homens tenham especulado que o motivo para que existam tão poucas mulheres nos escalões mais altos do xadrez seja o fato de que as mulheres não estão equipadas para o esporte —Kasparov disse certa vez que o xadrez não está na natureza das mulheres—, a opinião feminina é a de que o principal motivo para essa situação são expectativas e vieses culturais.

Polgar afirmou que a sociedade e até mesmo os pais podem solapar os esforços de uma filha para melhorar no xadrez, ainda que, em seu caso, seus pais, especialmente seu pai, tenham feito o oposto.

Começaram a ensinar a ela a jogar xadrez quando ela estava em idade de jardim de infância. Polgar tem duas irmãs mais velhas –Susan se tornou grande mestre e campeã mundial feminina, e Sofia se tornou mestre internacional. Isso ajudou a abrir o caminho para seu sucesso e serviu de apoio a ela.

Elizabeth Spiegel tem o título de “expert”, um degrau abaixo de mestre, e ensina xadrez há duas décadas na I.S. 318, uma escola pública do distrito nova-iorquino do Brooklyn cujos alunos venceram dezenas de títulos nacionais de xadrez nos Estados Unidos.

Ela acredita que estereótipos culturais definitivamente afetam a maneira pela qual as pessoas aprendem, e jogam, xadrez. Em sua observação, os meninos tendem a ter excesso de confiança, mas no xadrez isso é mais uma vantagem que um problema. Por outro lado, durante as aulas, quando as meninas respondem a uma pergunta, muitas vezes começam ressalvando que “acho que devo estar errada, mas”.

Krush disse que a clivagem cultural entre meninos e meninas começa bem cedo. Se você estudar as listas de melhores enxadristas americanos na faixa de idade dos sete, oito e nove anos, há pouquíssimas meninas entre os dez melhores.

Isso cria e reforça outro problema que desencoraja a participação feminina –a falta de contatos sociais. Jennifer Shahade, duas vezes campeã nacional de xadrez feminino nos Estados Unidos e autora de dois livros sobre mulheres no xadrez, “Chess Bitch” e “Play Like a Girl!”, e diretora do programa feminino da Federação de Xadrez dos Estados Unidos, disse que as garotas adolescentes tendem a deixar de jogar xadrez porque o número de jogadoras é baixo demais e elas querem se sentir socialmente conectadas.

O fato de que Beth seja uma pessoa solitária é um motivo importante para que ela não desista de jogar em torneios.

Shahade conta que ela mesma deixou o xadrez por algum tempo, lá pelos 12 anos de idade, ainda que viesse de uma família de enxadristas. Seu pai, Mike, era mestre de xadrez, e seu irmão Greg se tornou mestre internacional.

“Eu me sentia envergonhada”, disse Shahade. “Meu irmão era talentoso demais, e se tornou mestre muito cedo, e com muita facilidade. Eu demorei muito mais a aprender.”

Shahade, que era admiradora de Polgar quando mais jovem, disse que ver a história de Beth se desenrolar foi “totalmente inspirador”. Como Beth, que perde todas as suas partidas contra Benny quando eles jogam “speed chess”, ela prefere o xadrez clássico, ou lento.

Entre seus 74 mil membros, a Federação de Xadrez dos Estados Unidos informa que 10,5 mil são mulheres. Shahade deseja elevar esse número e incentivar a participação feminina. Para isso, ela e a federação criaram um clube online de xadrez, em abril, para manter o engajamento das enxadristas durante a pandemia.

Nas últimas semanas, entre 80 e 140 jogadoras participaram, algumas delas mulheres mais velhas. A última reunião também teve um convidado especial –Kasparov, que se tornou grande promotor do xadrez feminino depois de deixar as competições, em 2005. Ele trabalhou como consultor na série da Netflix.

Para manter o ímpeto, Shahade está lançando um novo grupo de leitura online chamado “Madwoman’s Book Club”. “Madwoman” [louca] é uma referência ao apelido pejorativo que foi dado à rainha do xadrez nos séculos 15 e 16, depois que ela se tornou a peça mais poderosa no tabuleiro. A primeira reunião já tem cem inscritos.

O assunto da discussão não deveria surpreender: “The Queen’s Gambit”, o romance de Walter Tevis que serviu de base à série.

Tradução de Paulo Migliacci

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