Bela tradução de 'Os 120 Dias de Sodoma' é lançada perto das eleições
Entre êxtase, aversão e fadiga, já não sabemos se lemos ou fomos lidos
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A pouco mais de 120 dias das eleições é um consolo que venha a público a bela tradução de Rosa Freire d'Aguiar dos 120 dias de Sodoma do Marquês de Sade. É que o esforço de erigir uma dicção setecentista põe a nu a genealogia da razão que ainda sustenta nossas instituições democráticas.
Não é por acaso que os quatro libertinos que se fecham em um castelo por quatro meses para ouvir histórias de quatro mulheres da vida sejam um conde, um bispo, um magistrado e um banqueiro. As paixões ali narradas e praticadas mostram a íntima relação que o poder estabelece entre lei e perversão.
Como se diz no Brasil, há sempre buracos (brechas) na lei. Como há buracos (orifícios) por todo o corpo, cujos vazios e secreções se prestam a infinitas acoplagens. Mas é ao atravessar esses buracos e dar corpo à lei que, como mostrou Livia Gomes, as paixões sadeanas colocam em xeque nossas concepções de humanidade, produzindo novos corpos e articulações linguísticas. A cena orgíaca é, assim, constituída pela equivocidade da perversão e da norma, do gozo e da linguagem, dos corpos e da lei.
Claro que o leitor deve estar pensando na repressão da violência e da crueldade que funda qualquer sociedade. Mas Sade funda sua ficção ao mostrar a ficção dessa fundação. Isto é, há sempre algo fora da lei que a sustenta e a funda. E há sempre um excesso de linguagem, a literatura, que assume o mal e o gozo como espaço paradoxal de reinvenção simbólica de novas formas de vida.
Daí o espanto que um pequeno rolo de papel perdido nas paredes da Bastilha —onde Sade esteve preso— ainda possa causar tanta perplexidade. Mesmo hoje é quase impossível não ser afetado pelas paixões ali descritas. Como se a leitura fosse ela também uma paixão libertina.
A forte estrutura de planos e regulamentos imposta tanto às orgias quanto à narrativa duplicam as paixões em um jogo de revelações sempre adiadas. Nos vazios de uma escrita inacabável, o corpo se joga, girando em torno de algo impossível de alcançar.
No final, entre o êxtase, a aversão e a fadiga, já não sabemos se lemos ou fomos lidos. Mas como estamos em uma escola de libertinagem, aprendemos ao menos o núcleo pivotante da nossa constituição. Há sempre mais de uma lei, uma sobredeterminação que atravessa a natureza e a razão, o corpo e a linguagem, as sensações e a moral, a palavra e a voz.
Ao tornar equívocos nossos ideais e nos jogar nas conexões parciais de nossas pulsões, Sade escancara que mesmo a lei, a razão e a moral mostram sua face violenta quando se tornam o único princípio hierárquico. Se ainda é um desafio, como propõe Eliane Robert Moraes, ler Sade hoje, isto se dá em parte porque vivemos uma nostalgia dessas determinações unívocas.
Se aceitássemos o paradoxo do gozo libertino talvez pudéssemos pensar de fato em uma ética e uma política. Aí quem sabe não precisaríamos de um juiz como herói, nem encaminhar as decisões políticas a um Supremo Tribunal. E na pior das hipóteses, a festa pela prisão de um ex-presidente não se daria em uma "casa de tolerância" não por acaso chamada Bahamas.
Roberto Zular é professor do departamento de teoria literária e literatura comparada da USP
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