Catártico, 'Nanette' manipula espectador para surpreendê-lo
Monólogo da comediante Hannah Gadsby, na Netflix, constrange e comove
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A unanimidade não é necessariamente burra como zombava Nelson Rodrigues, mas pode ser um tanto opressora. "Nanette", monólogo da comediante australiana Hannah Gadsby disfarçado de standup na Netflix, é tanto uma dissertação sobre essa máxima quanto um produto dela.
Não que o que Gadsby, 40, faz em pouco mais de uma hora de show, sozinha no palco, não seja revigorante (é, tanto quanto um choque elétrico).
Incomoda, porém, a reverência inconteste a algo cuja genialidade foi potencializada por erro de categorização.
O que Gadsby faz no palco, apesar de seu sarcasmo aguçado, é drama, e assim precisa ser lido. É enquanto drama –ela insiste que não quer conectar a plateia pela via fácil (fácil?) da risada ou da raiva– que seu "Nanette" fisga a empatia do (tele)espectador.
Resumo: Gadsby é uma comediante lésbica nascida e criada nos cafundós da Tasmânia, onde o homossexualismo era crime até 21 anos atrás.
Não bastasse essa horrenda barreira externa à sua aceitação, ela, que tem diploma em história da arte, se achou profissionalmente em um meio extremamente masculino/machista, o da comédia. Seu fardo é, portanto, duplo.
Não há graça na história de Gasby, tampouco redenção. Ela se declara com coisas a resolver consigo mesma, com sua arte e com o mundo. Não há como rir dela, e nem é isso que ela busca –mais de uma vez, Gadsby diz querer parar com a comédia.
Está aí a ousadia da humorista. Disfarçado de standup, seu monólogo sobre exclusão, amadurecimento e as limitações alheias em que esbarramos ganha o público amplo. É uma estratégia de marketing, narração e sobrevivência legítima nessa cacofonia de plataformas, telas e respingos de atenção alheia.
"Nanette" (o nome é aleatório, inspirado em uma mulher que ela conheceu superficialmente no passado) pode parecer voltado para os que se preocupam com política identitária e de gênero.
Mas seu apelo é amplificado pelo sentimento de impotência e desejo de reconhecimento que há em todo mundo, e o prazer sádico da nossa era da hiperexposição.
Ao explicar que faz da comédia um escudo para se defender do mundo, Gadsby não está, como sugerido, desvendando o humor autodepreciativo –é difícil ouvi-la sem lembrar de Fernando Pessoa (1888-1935), que, em "Autopsicografia", dizia que "O poeta é um fingidor/ Finge tão completamente/ Que chega a fingir que é dor/ A dor que deveras sente".
Ela está criando um canal com cada um que já fez isso para superar um medo ou sobreviver emocionalmente: recém-chegados a um ambiente hostil, tímidos em multidões, mulheres em rodas masculinas, deprimidos em meio aos alegres. Ou seja, todo mundo.
Sua tragédia despida no palco é a catarse de que o público precisa (Pessoa segue a explicar que "os que leem o que escreve/Na dor lida sentem bem/Não as duas que ele teve/Mas só a que eles não têm").
O monólogo de Gadsby não difere de um "textão" em rede social, um grito por atenção.
O que o legitima e nos fascina é que ela o conduz com inteligência e autenticidade comoventes, e não é pouca coisa emular Fernando Pessoa sem conhecê-lo. A nós, sobra constatar que só atentamos para aquilo que muitos chancelam.
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