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Eleitores de verde e amarelo deliram com uma Brasília nostálgica atrás de Bolsonaro

Multidão ostentando a bandeira se espremeu entre barricadas na Esplanada para ver o 'Mito' passar

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Brasília

Ultrapassamos a rodoviária e seguimos caminhando rumo à Esplanada pelo flanco do Teatro Nacional. A arquitetura maltratada, as pichações sobre o relevo criado por Athos Bulcão, os vidros sujos, a ferrugem na placa de entrada e o abandono do jardim externo de Burle Marx enfatizam o peso dos anos e da negligência pública sobre essa Brasília pós-utópica que continua a despertar sentimentos contraditórios.

A vista do eixo monumental, com seu futurismo datado e o aspecto envelhecido das edificações —o revestimento que despencou da lateral do prédio da Fazenda, o forro arruinado do terminal de ônibus, as muretas rachadas e mal pintadas-- se oferece ao visitante como uma espécie de cenografia melancólica de uma modernização nunca concluída.

Revejo a cidade como se assistisse a um velho desenho animado, com cores desbotadas, dos Jetsons.

Boneco inflável do presidente Jair Bolsonaro na Esplanada dos Ministérios - Mauro Restiffe/Folhapress

Assim mesmo meu coração balança à visão da Catedral, do palácio do Itamaraty ou do Alvorada —este, enfim, restaurado há pouco.

Estamos na segunda, 31 de dezembro, e o déficit de sociabilidade urbana propiciado pelo plano-piloto vai sendo preenchido pelas pessoas que se aproximam da Esplanada para ver o palco da posse de Jair Bolsonaro, marcada para o dia seguinte.

Descemos —o fotógrafo Mauro Restiffe e eu— em direção ao gramado para entender como funcionaria o que se anunciava como o mais severo esquema de segurança já visto nessas ocasiões.

Serão quatro check-points —alguém explica— em grau crescente de atenção. Quanto mais próximos da praça dos Três Poderes, mais rigorosa a revista.

Restiffe já havia fotografado duas posses presidenciais. Em 2009 foi à de Barack Obama, na Washington gélida de início do ano. Em 2003, deixou Goiânia, onde estava em viagem com a mulher, para a solenidade de investidura de Luiz Inácio Lula da Silva como terceiro presidente eleito pós-redemocratização.

"Foi uma espécie de apoteose da liberdade", ele lembra. "As restrições eram mínimas e as pessoas se aproximaram do Congresso, entraram no espelho d'água, se apossaram da cidade."

As fotografias foram mostradas pela primeira vez na galeria paulistana Casa Triângulo e ganharam o mundo depois de expostas na Bienal de São Paulo, em 2006. Hoje fazem parte do acervo de grandes museus, como o MoMA, em Nova York, e a Tate Modern, em Londres.

A chegada ao poder de um ex-líder operário e de um partido que prometia renovar costumes políticos e governar para os mais pobres era o que parecia faltar para restituir o sentido primordial de Brasília, como cidade-marco de um novo tempo de desenvolvimento e justiça social.

Agora, aquelas promessas já foram varridas pelo tsunami conservador que levou Bolsonaro ao Planalto. Lula, PT e a política tradicional da capital babilônica são os grandes vilões do cortejo verde e amarelo que se organiza para glorificar o advento do Mito.

Gente como Helio Rodrigues, de Araguaína, no Tocantins, que é entrevistado por uma repórter com cocar de índio para um site do Pará. "Desde 2016 trabalho e faço campanha gratuita para Bolsonaro, porque agora vai ser bonito ser honesto", declara, sob aplausos da rodinha que o circunda. Ou como a niteroiense Joana d'Arc, empolgada ao anunciar que vem aí um Brasil "mais confiante".

"Apostei minhas fichas no Bolsonaro e tenho certeza que a mudança vai acontecer e ele vai sair vencedor."

À noite, decidimos romper o ano na festa popular programada para o estacionamento do estádio Mané Garrincha, com show de fogos de artifício e apresentações de artistas como Rapadura Xique Chico, Emicida e Naiara Azevedo.

Chove sem parar e o público é decepcionante. Compramos capas de plástico. Faz calor e me sinto enfiado num saco de lixo. À meia-noite os fogos iluminam a cena como numa festa do interior. Tudo parece comovente e triste. A gente pobre olha para as luzes que desabrocham como grandes flores no céu. Não vemos camisas amarelas. Não ouvimos gritos de Mito.

O primeiro dia de 2019 amanheceu chuvoso —um mau presságio para uma jornada que se anunciava exaustiva. Na véspera, soubemos que os jornalistas credenciados teriam de se apresentar às 7h no Centro Cultural Banco do Brasil para que fossem levados em veículos oficiais ao Congresso. Por volta das 10h do dia da posse, recebo uma mensagem de uma colega da sucursal do jornal em Brasília contando que não puderam entrar com maçãs.

É compreensível que o padrão de segurança se elevasse depois do atentado à faca. Mas aquilo já entrava no terreno da arrogância e do sadismo.

Previa-se que Bolsonaro chegasse ao Congresso entre 14h45 e 15h. Fomos a pé e estávamos prontos para cruzar o primeiro check-point perto das 13h, quando as filas começavam a se formar.

Fui o primeiro a passar pelo bloqueio. Retirei carteira e celular do bolso, ergui os braços, fui revistado e segui. Restiffe não teve a mesma sorte. O policial militar disse que ordens recentes impediam a entrada de pessoas com câmeras.

"Mas como assim?" Câmeras não constavam da lista oficial de itens proibidos. "São ordens que chegaram agora", insistiu o PM. "Só pode fotografar com celular."

A atmosfera de irrealidade distópica se adensou. Estaríamos num filme de David Lynch? Num episódio de "Black Mirror"? Ou no "Farenheit 451"?

Soubemos, a seguir, que a restrição seria apenas para "câmeras profissionais". Restiffe usa há anos uma Leica analógica M6, com lente 35 milímetros. É relativamente pequena e poderia passar facilmente por uma máquina fotográfica de turista. Decidimos então, meia hora depois, fazer uma nova tentativa, numa outra fila. Deu certo.

Aqui estamos, enfim, no grande circo místico. Um grupo de religiosos exibe placas. "Disse Jesus: toda nação dividida não subsistirá! Ore pelo Brasil". Mais adiante pregam por um país livre do aborto e das drogas.

Presume-se que o público de uma posse presidencial represente, em grande parte, a parcela mais dedicada ou militante de seu eleitorado.

O rebanho mobilizado de Bolsonaro que ali comemora o triunfo parece, a olho nu, formado por uma massa majoritária de classe média saída dos álbuns de fotografias de casamentos e churrascos de família. A maioria é branca, mas há gente de todas as cores e também de posições sociais variadas.

Casais posam para fotos com militares. Bandeiras de Israel são acenadas aqui e ali. Um pai chama o filho de Bolsonarinho. Um menino corre, vestido de PM. Bandeiras do Brasil por todos os lados. Uma manifestação cívica, religiosa, patriótica, que faz lembrar, em cores brasileiras, uma convenção do Tea Party americano.

Os fiéis seguidores de Bolsonaro também querem restituir sua Brasília imaginária. Não a de Juscelino Kubitschek ou a de Niemeyer. Muito menos a do PT. Sonham em restaurar a capital que foi tomada pelo marechal Humberto de Alencar Castelo Branco, em 1964. Afinal, como disse Bolsonaro, com todas as letras, o objetivo é fazer o Brasil ser igual ao de 50 anos atrás.

Nessa alucinação nostálgica, reencena-se a cruzada mítica da Guerra Fria, a luta do bem contra o mal, da religião contra o ateísmo, da família contra a dissolução dos costumes, da arte sadia contra a cultura degenerada.

A fantasia da ordem preside o movimento contra o medo de um futuro desconhecido.

O tempo passa e o esquema de segurança continua tão rígido quanto improvisado. Passagens se abrem e fecham de maneira abrupta. Pessoas ficam retidas em cercados e vagam como zumbis desorientados. O clima é mais de afirmação de vitória do que de festa e celebração.

O acesso à praça dos Três Poderes está interditado e estamos separados por uma cerca do Congresso. Todos tentam adivinhar se o presidente passará por esta ou aquela via. A um sinal de movimentação, ouve-se o coro de "Mito, Mito!".

 

Um militar anuncia que já será possível ultrapassar a grade e chegar à praça. "Pelo lado de lá", indica. Começa, em vão, um corre-corre. A passagem continua fechada.

São 17h30 e estamos retidos num quadrilátero. Teremos que esperar os convidados chegarem ao coquetel do Itamaraty, previsto para as 19h.

A massa exausta, com fome e castigada pelo sol se irrita. Começam os gritos de "abre, abre!". Um agente vai a um aparelho de som pedir calma. Muitos erguem o dedo médio, naquele sinal característico. "É um desrespeito ao direito de ir vir", protesta alguém. "Programa de índio", diz outro. O caminho, enfim, é aberto. Alívio. Vida de gado. Povo marcado, povo feliz.

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