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Homens estão por trás das letras de canções que viraram hinos feministas nas paradas

Elza Soares, Beyoncé, Ariana Grande e Pocah estão entre artistas que entoam músicas de autoria masculina

Beyoncé no clipe de "Run the World (Girls)" - Reprodução

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Rio de Janeiro

“Deus é mulher, Deus há de ser.” “Mina, não deixe ninguém te dizer o que você pode fazer.” “Deixa eu te lembrar que eu não sou obrigada a nada, ninguém manda nessa raba.” 

Três versos fortes, entoados por mulheres fortes. Todos escritos por homens.

Elza Soares canta a primeira das estrofes, de “Deus Há de Ser”. Autor: Pedro Luís Teixeira de Oliveira, da banda Pedro Luís e a Parede. É de Negra Li a segunda, “Mina”, de Vulto, Fábio Brazza. E Pocah, ex-MC Pocahontas, vem estourando com “Não Sou Obrigada”, emancipação de seu bumbum erigida por Wallace Vianna, Pedro Breder e André Vieira.

Essas composições integram um pacote comum na indústria cultural, na qual músicas de voltagem feminista são, em boa parte, feitas por homens. São prato cheio para o debate sobre gênero e sobre o “lugar de fala” —com que propriedade homens podem meter o bedelho no feminismo, ou brancos no racismo?

O fenômeno tem mais cores que o verde-amarelo. Mesmo o repertório mais feminista de Beyoncé conta com um time masculino. Sabe “Run the World (Girls)”, sobre como as meninas vão dominar o mundo? Ela divide os créditos dessa com seis homens.

Se Elza diz que “Deus há de ser fêmea, Deus há de ser fina”, Ariana Grande também imbui de feminilidade a figura máxima de várias religiões em “God Is a Woman”. Em seu Twitter, a americana descreveu a música como “empoderamento sexual feminino”. 

Só não são a força criadora por trás desse hit em particular, uma ideia original de Savan Kotecha e Rickard Göransson, que já compuseram para artistas como Britney Spears e Avril Lavigne. “Você vai descobrir que Deus é mulher” foi a frase original que veio à cabeça deles. Acabaram chegando a Ariana, que gostou e ajudou a finalizar a canção. 

“Deus é fêmea” foi o que Pedro Luis diz ter ouvido de uma cantora que já morreu, em 2000. Ela queria uma canção feita por ele e deu o tema. 

Mas quem a gravou foi outra amiga, Elza, “dessas que defende uma canção como poucxs”, ele escreve à Folha, usando o “x” da chamada linguagem neutra, adotada por feministas e LGBTs que veem um estereótipo nocivo na linguagem que separa feminino de masculino. 

Certa vez, Pedro Luis sussurrou a ela: “Deus é mulher!”. A intérprete topou na hora. “E lá foi a canção batizar o disco, para orgulho máximo desse humilde poeta que vos fala.”

Sobre o tal lugar de fala, o musicista diz que “se o que toma meus sentidos, querendo virar canção, atravessa um território que não é exatamente o que me pertence, peço licença, me visto de respeito e admiração, mas arregaço as mangas e ponho minhas mãos à obra”.

O ex-marido de Viviane de Queiroz Pereira, a Pocah, era um tipo impositivo. “Essa coisa de mandar nas minhas roupas, de controlar a minha vida.” E o casamento a fez se tornar feminista, diz.

A funkeira também já “cancelou um boy” (terminar com alguém, na língua dos jovens) que reclamou do tamanho do short dela. Mandou na lata: “Vou sair assim, e se não for com você, vai ser com outro”.

Ela não é obrigada a nada, como canta em seu funk escrito pelos três homens por trás da Hitmaker, produtora especializada em criar hits, como diz o nome em inglês. O que importa, afirma Pocah, é “eles fazerem a música de acordo com o meu pensamento”.

Uma pegada parecida com a de Negra Li: “Quem escreve a música pensa mais na mensagem do que no gênero de quem escreveu, e isso é inspirador. Ainda mais pra mim, que interpreto a música”.

Mulheres tiveram pouco espaço até aqui, avalia a musicista e pesquisadora Luísa Toller. Tantos músicos canetando a luta feminina, para ela, “é sintoma de um mercado cultural atrasado, que ainda prioriza composições feitas por homens e que, ao mesmo tempo, tenta se atualizar com os temas que estão sendo debatidos, mas não se desconstrói em sua estrutura”.

Luísa é autora de marchinhas carnavalescas como “Mulheres na Marcha” (“quem sabe um dia a gente saia sem camisa, faça xixi na rua para poder sentir a brisa”) e “Tomara que Caia” (uma torcida para que caiam “o patriarcado, o presidente, o esquerdomacho”). 

Um meio, aliás, pródigo em letras “empoderadas” com autoria masculina, lembra. Caso de “Não Vem Se Eu Não Quiser”, marchinha sobre assédio no Carnaval composta por Carlos Linhares. 

“Se os homens estão se atualizando, querendo falar sobre assuntos atuais e interessantes pro feminismo, poderiam falar também de si”, diz Luísa. “De masculinidade tóxica e frágil, de paternidade, de violência, enfim, também temos muito o que desconstruir do lado deles. Lugar de fala não pode se tornar ‘lugar de falo’.”

“Por muito tempo, as mulheres foram colocadas no lugar de intérpretes”, afirma Carol Oms, diretora-executiva do feminista Instituto AzMina. E vai da Gal Costa, que ecoou o hit de Erasmo Carlos “Mulher, Sexo Frágil”, a Valesca Popozuda, com sucessos escritos pelo ex-marido Pardal, como “Tá pra Nascer Homem que Vai Mandar Em Mim”. 

“Nada impede que uma música composta por um homem contemple as pautas das mulheres, mas acredito que este espaço será cada vez mais ocupado por nós em todas as frentes”, diz Oms.

Andressa Oliveira, produtora cultural da Liga do Funk, fala do seu meio: vê por aí muitas MCs mulheres que “têm construído letras com grandes apontamentos feministas, inclusive na putaria. Falam sobre violência doméstica, direito ao corpo, sexualidade, gênero, prazer.”

Exemplos? Na ponta da língua: o batidão de título autoexplicativo interpretado por MC Rebecca e saído da caixola de outra funkstar, Ludmilla: “Cai de Boca”.


Composta por eles, cantada por elas

‘Deus Há de Ser’
Deus é mulher
Deus há de ser
Deus há de entender
Deus há de querer
Que tudo vá para melhor
Se for mulher, Deus há de ser
Deus há de ser fêmea
Deus há de ser fina
Deus há de ser linda
Deus há de ser

Famosa na voz de Elza Soares, a canção foi escrita por Pedro Luís

‘Mina’
Mina, bota o seu melhor batom
Escolha o seu melhor som
Joga esse cabelo pro ar e deixa estar
E deixa estar, e deixa
Mina, não deixe ninguém te dizer
O que você pode fazer
Você que sabe o seu lugar e deixa estar
E deixa estar, e deixa

Famosa na voz de Negra Li, a canção foi escrita por Fábio Brazza e Vulto

‘Não Sou Obrigada’
Deixa eu te lembrar que eu não sou obrigada a nada
Ninguém manda nessa raba
Uma bunda dessa não nasceu pra ser mandada
Ninguém manda nessa raba

Famosa na voz de Pocah, foi escrita por André Vieira, Pedro Breder e Wallace Viana

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