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No fim da década, literatura para jovens adultos parece estar se devorando viva

Autores de literatura no Reino Unido estão em pânico quanto ao declínio corrente nas vendas, que em fevereiro chegaram ao seu ponto mais baixo em 11 anos

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Laura Miller
Slate

Como fenômeno editorial, a literatura para jovens adultos iniciou a década como um leão. No começo dos anos 2010, uma geração que cresceu obcecada por Harry Potter e outras séries de fantasia lidas quando seus integrantes ainda estavam na escola decidiu que a ficção literária adulta, com suas tramas chochas e finais muitas vezes deprimentes, não a interessava muito. A literatura para jovens adultos parecia preparada para lhes oferecer muita ação, finais cheios de suspense, seres sobrenaturais, vilões melodramáticos e amor verdadeiro. Mas agora, no final da década, a literatura para jovens adultos parece estar se devorando viva.

Em 2010, “Crepúsculo”, de Stephenie Meyers, já havia provado que uma série para jovens adultos envolvendo múltiplos volumes, um triângulo amoroso e uma boa dose de sofrimento paranormal podia funcionar como uma espécie de licença para imprimir dinheiro, especialmente quando o filme inevitável surgiu. Em seguida, a versão cinematográfica de “Jogos Vorazes”, de Suzanne Collins, uma série imensamente popular em livro, se tornou um grande sucesso nas bilheterias em 2012, acrescentando narrativas distópicas ao elenco de temas que geram grande sucesso comercial na literatura para jovens adultos. Para se distinguir em um campo cada vez mais lotado, os personagens do gênero começaram a contar como poderes especiais cada vez mais estranhos, e em alguns casos claramente manipulativos: a capacidade de mudar a forma do ferro, matar com um toque ou se transformar em abelha —e eles tinham de enfrentar sociedades que ditavam com quem podiam se casar, segregavam-nos em facções com base em seu temperamento ou os sujeitavam a cirurgias que erradicavam sua capacidade de amar. A distopia era um gênero atraente para a garotada de classe média que cresceu pesadamente vigiada pelos pais e pela mídia social, e pressionada a competir por seu lugar em uma meritocracia infatigável, já desde a escola.

Mas talvez o acontecimento mais emblemático na literatura para jovens adultos na década de 2010 tenha tido menos destaque: a fundação da Full Fathom Five, uma “companhia de criação de conteúdo”, por James Frey, cujo livro de memórias, “A Million Little Pieces”, de 2003, terminou exposto como substancialmente falso. Em um artigo publicado em 2010 pela revista New York, Suzanne Moses descreveu a maneira pela qual Frey a recrutou, bem como a outros alunos do do programa de pós-graduação em literatura da Universidade Columbia, para produzir diversas séries de livros para jovens adultos sob a marca Full Fathom Five, com premissas altamente comerciais e direcionadas a atrair produtores de cinema. Em troca, os aspirantes a carreiras literárias recebiam honorários no valor fixo de US$ 250 (R$ 1.015) e a promessa de uma participação nos futuros proventos, mas não tinham qualquer direito sobre suas criações e ficavam submetidos a um acordo de confidencialidade orwelliano.

O mais bem-sucedido desses produtos, “Eu Sou o Número Quatro”, de 2011, foi escrito por Frey e Jobie Hughes, sob o pseudônimo Pittacus Lore, e adaptado para o cinema pela DreamWorks em 2011. Em dado momento, a Full Fathom Five chegou a empregar 28 escritores, que produziam livros genéricos para jovens adultos por remuneração mínima. O empreendimento de Frey, que continua a existir, é uma fábrica de literatura para jovens adultos cujas séries atuais se expandiram para incluir histórias de amor e uma série para alunos do ensino médio chamada “The Fart Squad” [esquadrão do pum].

A literatura para jovens adultos produziu muitos livros com méritos literários genuínos, de “A Culpa É das Estrelas”, de John Green, a “The Lie Tree”, de Frances Hardinge, que ganhou o Costa Book of the Year Award em 2015 no campo dos romances para jovens adultos. Mas títulos como esse não foram o que atraiu Frey e outros mercenários à literatura para jovens adultos, durante a corrida do ouro que se seguiu a “Crepúsculo” e “Jogos Vorazes”. Boa parte do gênero sempre dependeu de fórmulas repetitivas e de um alto volume de produção, remontando a “Carolyn Keene”, o pseudônimo coletivo usado pelos muitos escritores contratados para redigir a série de livros de mistério protagonizados por Nancy Drew, a partir da década de 1930. Foi só na década de 2010 que esse gênero literário se mostrou capaz de vender milhões de cópias. A trilogia “Divergente”, de Veronica Roth, que se passa em uma Chicago pós-apocalíptica, vendeu 6,7 milhões de livros entre 2011 e 2013. Imitações proliferaram. Bonanças são raras no mercado de livros, mas essa foi uma das grandes.

Leitores adultos foram uma fonte significativa de consumo durante esse boom. Em 2012, a revista Publishers Weekly, que cobre o mercado editorial americano, noticiou um estudo que demonstrava que 55% dos livros direcionados a uma audiência de jovens adultos (leitores dos 12 aos 17 anos) eram comprados por adultos, e 78% das compras se destinavam a consumo pelo comprador mesmo. O maior segmento dentro desse grupo, as pessoas com idades de entre 30 e 44 anos, respondia por 28% das vendas de livros para jovens adultos. E embora a maior parte desses compradores não tenha expressado interesse em aderir a um clube de leitura tradicional, a maioria se descrevia como muito envolvida em redes sociais online, de sites criados para atender a leitores, como o Goodreads, a plataformas de interesse geral como o Twitter. Os leitores de fantasia e ficção científica foram os primeiros fãs de gêneros específicos de literatura a se congregar online, mas os adeptos e influenciadores da literatura para jovens adultos entraram avidamente nas redes de mídia social, com um entusiasmo e rapidez impressionantes, mas nada surpreendente. Muitos deles tinham origens nos grupos de leitores devotados de Harry Potter, anos atrás.

No começo, a formação de redes sofisticadas entre os adeptos da literatura para jovens adultos parecia completamente positivo. Bibliotecários e blogueiros se uniam a leitores comuns online para trocar recomendações e promover novos lançamentos de autores prediletos como Cassandra Clare, Rainbow Rowell, Leigh Bardugo e Maggie Stiefvater. A divulgação por leitores sempre foi a forma mais eficiente de comercializar ficção, e o novo sistema era uma versão muito mais robusta desse método de divulgação.

Em 2017, a comunidade online dos fãs de literatura para jovens adultos detectou e expôs um falso best-seller na lista de mais lidos do The New York Times, “Handbook for Mortals”, de Lani Sarem, ex-atriz e roteirista que se descreve como “cigana do rock” e cujo romance de estreia misteriosamente apareceu no topo da lista de mais lidos entre os livros para jovens adultos, ainda que ninguém na comunidade tivesse ouvido falar dele, ou lido o livro. Investigadores online, muitos dos quais autores de livros para jovens adultos, não demoraram a resolver o mistério do sucesso que chegou “de surpresa”. Em uma jogada digna de Frey, Sarem manipulou a lista do The New York Times ao encomendar grandes quantidades de seu romance de produção independente ainda antes do lançamento. O objetivo final da manobra? Vender a história para o cinema, claro.

Ela podia ter economizado dinheiro e esforço. Pelo final da década de 2010, diversas adaptações para o cinema e a televisão de séries muito populares de fantasia e ficção científica para jovens adultos haviam fracassado  —trabalhos de Roth, Clare, Rick Yancey e Pittacus Lore. Versões cinematográficas de livros isolados passados em cenários contemporâneos realistas, como “A Culpa É das Estrelas” e “Com Amor, Simon”, se saíram melhor, mas não serviam como base para séries de imenso sucesso de bilheteria como “Crepúsculo” e “Jogos Vorazes”. Enquanto isso, as tentativas de escritores aspirantes ao sucesso de aproveitar as tendências do momento gerou uma inundação de títulos no mercado de literatura para jovens adultos.

Ao mesmo tempo, pessoas de dentro e de fora do mercado editorial começaram a se preocupar por o setor ser (e continuar sendo) exageradamente branco. Como é que uma força de trabalho monocultural poderia atender a um mercado (o dos jovens) historicamente tão diversificado? Profissionais do mercado editorial criaram iniciativas como a Precisamos de Diversidade Nos Livros, uma organização sem fins lucrativos que concede bolsas a escritores e oferece estágios pagos a estudantes universitários interessados em trabalho editorial, mas que não têm como bancar trabalhar de graça em Nova York para as editoras.

Foi uma mudança estimulada por uma das comunidades de leitores online mais inclusivas que o setor já viu. Em 2015, a escritora holandesa Corinne Duyvis criou a hashtag #ownvoices, no Twitter —que aos pouco se tornou um dos principais polos de diálogo sobre o gênero—, com o objetivo de “recomendar literatura infantil com personagens diversos e escritos por autores igualmente diversos”. “The Hate U Give”, um romance de Angie Thomas sobre vítimas negras de violência policial, publicado coincidentemente alguns meses antes da eleição americana de 2016, se tornou um best-seller firme, assim como “Children of Blood and Bone”, de Tomi Adeyemi, uma obra de fantasia inovadora, com raízes na mitologia africana, publicada no segundo trimestre do ano seguinte.

O impulso que conduziu a essas e outras empreitadas dignas é vulnerável a distorções para fins menos salutares, no entanto, em plataformas que favorecem panelinhas, revanches e correção política ostensiva.

Nos dois últimos anos, redes online de autores e leitores de literatura para jovens adultos —formadas em sua maioria por mulheres adultas— foram abaladas por diversos escândalos e controvérsias, que deixaram muitos observadores externos com a impressão que a seção do Twitter dedicada à literatura para jovens adultos é irrecuperavelmente “tóxica”. Blogs e comentaristas do Twitter detonaram “The Black Witch”, um romance para jovens adultos lançado por Laurie Forest em 2017, por seu suposto “racismo”. A crítica se provou pouco convincente —mesmo para leitores adolescentes, que compram o livro e comentam entusiasticamente sobre ele na Amazon. Mas poucas das pessoas que comentaram optaram por ressaltar o quanto “The Black Witch” é previsível, com a usual heroína de origem nobre confrontando um mundo injusto, e envolvida no habitual triângulo amoroso formado por ela, um bom moço e um “bad boy”. O livro não parece digno da energia que os leitores colocaram na briga a respeito dele.

Enquanto isso, o jornal britânico Guardian noticia que os autores de literatura para jovens adultos no Reino Unido estão em pânico quanto ao declínio corrente nas vendas, que em fevereiro chegaram ao seu ponto mais baixo em 11 anos. As listas de best-sellers de literatura infantil nos Estados Unidos, que viviam lotadas de títulos destinados a jovens adultos, na metade da década, agora são dominadas por títulos inócuos para leitores mais jovens, como “Captain Underpants” e “Dork Diaries”, incontáveis títulos de James Patterson dirigidos aos estudantes de primeiro grau, pelas aventuras mitológicas para meninos de Rick Riordan, e pela impressionante avalanche de títulos da série “Diário de um Banana”, de Jeff Kinney, cujo mais recente lançamento é o livro mais vendido da semana em qualquer género, no momento em que estou escrevendo. Se você desdenhou o “Fart Squad” da Full Fathom Five, bem, essa pode ser mais uma das ocasiões em que James Frey ri por último.

Tradução de Paulo Migliacci

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