No SP sem Censura, peça 'Santo Inquérito' vira ato de resistência ao arbítrio
Montagem de Dias Gomes da Cia. BR116 teve o seu projeto de captação de recursos negado pelo governo federal
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Em fevereiro deste ano, a Cia. BR116 teve seu projeto de captação de recursos para a montagem da peça “Santo Inquérito” arquivada sem justificativas pela Secretaria Especial da Cultura do governo federal.
Embora fale em questões técnicas, ao que tudo indica, o secretário Mário Frias vem criando impeditivos burocráticos para projetos avessos ao seu campo ideológico.
A peça, escrita por Dias Gomes em 1966, retrata um tribunal de inquisição português no século 16, que se vale da tortura e do arbítrio para julgar. Era uma referência ao enviesamento da Justiça e à recorrente utilização da tortura pela recém-instituída ditadura militar brasileira.
As tentativas atuais de revisionismo, que buscam relativizar o horror da ditadura, com as mais estapafúrdias justificativas, parecem estar por trás do esforço do governo federal em dificultar a vida de projetos como este da Cia. BR116.
Como um ato de resistência a tais desmandos arbitrários, estreou na sexta, no YouTube, uma leitura encenada de “Santo Inquérito”, dentro do Festival São Paulo sem Censura. Se, por um lado, o travamento de recursos inviabilizou o projeto tal como foi idealizado, por outro, e paradoxalmente, as circunstâncias possibilitaram também que se criasse uma versão experimental com uma forte articulação estética entre teatro, vídeo e reflexão crítica.
A leitura da peça aconteceu no palco do Theatro Municipal e foi seguida por um debate com o secretário municipal de Cultura, Alê Youssef, o diretor-geral do teatro, Hugo Possolo, a advogada Cris Olivieri e o padre Júlio Lancelotti, que comentaram a leitura e o momento da cultura no país.
A versão virtual do evento justapôs, contudo, estes dois momentos. O trabalho de edição e montagem do vídeo criou interrupções no fluxo da leitura da peça e inseriu comentários recortados do debate que aconteceu em seguida.
Logo depois de uma fala da personagem Branca Dias, por exemplo, o tempo do vídeo é dilatado e entra a voz de Lancelotti, da Pastoral do Povo da Rua, fazendo uma analogia entre a personagem e as mulheres em situação de rua.
Surgiu, então, uma obra mais próxima do ambiente vivo de uma sala de ensaio do que do espetáculo acabado. Os atores têm o texto na mão, os planos do vídeo enquadram os bastidores desencantados do teatro e as falas dos debatedores atravessam o drama de Branca Dias, sublinhando certa atmosfera reflexiva em torno do acontecimento.
O resultado é uma obra aberta, que busca fazer do encontro entre teatro e cinema uma forma de mobilização do raciocínio crítico. Esse tom de ensaio do evento, portanto, não é uma marca de incompletude. Ao contrário, dá um sentido novo, dinâmico e forte para a obra e ajuda a combater certo sentimentalismo frágil que a peça de Dias Gomes possui.
Apesar dessa modulação crítica que o corte cinematográfico conquista, o trabalho do grupo de atores não o acompanha. As atuações se desenvolvem muito coladas na dramaticidade idealista da peça, que, de modo geral, tenta enfrentar o problema histórico do ponto de vista somente subjetivo.
Na peça, todo o horror do processo inquisitorial que cai sobre Branca Dias é deflagrado pelo desespero de um padre ao se sentir atraído por ela. Ou seja, a estrutura obscurantista da Inquisição, sistematicamente moldada para reafirmar a esfera de repressão e poder político da Igreja Católica no século 16, aparece na peça reduzida a fórmula do recalque e do ressentimento de seus agentes.
Como se a Inquisição, a tortura, a repressão (ou, por analogia, a censura atual) fossem sempre movidos pela vontade de destruir no outro aquilo que é vontade reprimida em si mesmo.
É uma fórmula redutora de olhar para os movimentos da sociedade, sobretudo porque facilita certa divisão moralista entre um lado livre, esclarecido e expansivo e outro ressentido, amargurado e artisticamente fracassado.
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