Ópera de Piazzolla com prostitutas emana vida, criatividade e bom gosto
'María de Buenos Aires', no Theatro Municipal de São Paulo, arranca aplausos merecidos da plateia
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Um, dois, três; um, dois, três; um, dois. Chamada de “tresillo” pelos musicólogos cubanos, a célula rítmica cíclica que acentua desigualmente oito batidas está presente do norte ao sul das Américas, onde quer que a presença musical africana seja sentida. Ela está, por exemplo, no samba de roda, no baião e no tango argentino.
Astor Piazzolla, cujo centenário é celebrado, nunca deixa o ritmo longe de si. Ele parece representar aquilo que Egberto Gismonti uma vez chamou “música de sobrevivência”, a pulsação perene como forma de luta contra a dor e a fome.
O "tresillo" acompanha do início ao fim a ópera “María de Buenos Aires”, que Piazzolla compôs sobre libreto de Horacio Ferrer, estreada em maio de 1968.
A história da prostituta María, de sua vida-morte e da permanência de seu espírito a errar pelas periferias da cidade, tem uma nova montagem do Theatro Municipal de São Paulo, que retoma a temporada presencial de óperas após quase dois anos de interrupção.
Com direção musical de Roberto Minczuk, que rege um grupo instrumental reduzido posicionado no palco, e direção cênica de Kiko Goifman, o elenco conta com a cantora colombiana Catalina Cuervo, como María, o barítono Gustavo Feulien, o Cantor, e o ator Rodrigo Lopez, o Duende.
Goifman e equipe usam imagens de arquivo —muitas cenas da velha Buenos Aires—, mas também filmam ao vivo no próprio palco, e esse vasto material é editado em tempo real e projetado em duas telas, uma gigante, que ocupa todo o fundo de cena, e uma menor, de pelúcia.
Além do elenco principal e dos músicos, o palco tem performances de três prostitutas, integrantes da grife Daspu, três bailarinos do Balé da Cidade, dois performers e membros do Coro Lírico.
Tudo isso pode parecer muita coisa —ainda mais se considerarmos que maestro e músicos estão no palco, e que há igualmente a projeção das legendas—, mas de fato a história de María pede um certo transbordamento de sentidos, que Goifman enfatiza desde o início em imagens de água —copos cheios e enchentes— e fogo —cinzas de cigarros. Sua concepção emana vida, criatividade e bom gosto.
Mas há também a música de Piazzolla, que amplifica a formação célebre de quinteto (com bandoneón, guitarra elétrica, piano, violino e contrabaixo), com a qual se apresentava, adicionando flauta, cello, bateria e percussão.
Seus tangos, valsas e milongas trazem modulações modernas, mudanças súbitas de andamento —para acolher melodias líricas e expressivas— e pitadas virtuosísticas de contraponto barroco, como em “Fuga e Mistério”, talvez o ponto alto da récita de estreia, tocada em alta rotação e com equalização primorosa.
Sob a direção impecável de Minczuk, vale ressaltar as presenças de Milagros Caliva, no bandoneón, e Chrystian Dozza, na guitarra e no violão, ao lado de músicos da Sinfônica Municipal.
A relação entre essa música —de assinatura tão forte— e o —igualmente forte— texto de Ferrer é desigual na composição da ópera. Começa equilibrando bem declamação, canções e números instrumentais, mas na segunda parte a força dramatúrgica do canto diminui.
Daí a importância de contar com um artista como Rodrigo Lopez, que mantém a narrativa intensa e protagoniza os momentos mais emocionantes do espetáculo.
Nascida num dia “em que Deus estava bêbado”, mesmo depois de morta María dará à luz; não a um menino —como prometia a anunciação, plena de referências bíblicas—, mas a uma menina, outra María a vagar, tarde da noite, entre sonho e vigília.
Na famosa ária em que se apresenta —momento de maior destaque da personagem de Catalina Cuervo—, ela canta “de Buenos Aires, María/ yo soy mi ciudad”. Não há idealização –María é da quebrada, e as prostitutas são aplaudidas de pé tão só por serem quem são e estarem onde estão.
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