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Gabriel Abreu, em livro de estreia, expõe a sua mãe em vez de se expor

'Triste Não É ao Certo a Palavra' mostra cartas, fotografias e intimidade de uma mulher que não é capaz de consentir

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Alex Castro

Escritor, é autor de 'Atenção.' e 'Mentiras Reunidas'

Triste Não É ao Certo a Palavra

Avaliação: Regular
  • Preço: R$ 64,90 (208 págs); R$ 34,90 (ebook)
  • Autoria: Gabriel Abreu
  • Editora: Companhia das Letras

O filósofo francês Roland Barthes morou com a mãe durante 60 anos. Quando ela morreu, ele entrou em um luto profundo. Seu último livro, "A Câmara Clara", uma reflexão a partir de uma foto da mãe, é considerado um dos livros mais importantes sobre fotografia do século. Entretanto, a imagem em si, assunto principal do livro e catalisador de todas as reflexões, nunca é mostrada.

Barthes não queria trivializar a imagem da mãe. "Não posso mostrar a foto. Para vocês, não seria nada além de uma foto indiferente, uma das mil manifestações do ‘qualquer’", escreveu.

O artista plástico carioca Gabriel Abreu perdeu a mãe para a demência. Ela não fala, não come sozinha, não se levanta. Num dado momento, ele encontra uma caixa pessoal com várias fotos e cartas íntimas da mãe, incluindo até um diário de seus primeiros meses, escrito por ela, mas narrado em primeira pessoa por ele —"1º dia – 08/01/93 – sexta-feira". "Meu nome é G. Nasci às 21h15 com 3,65 kg e 50 cm de comprimento."

O escritor e artista Gabriel Abreu, autor de 'Triste Não É ao Certo a Palavra' - Philipp Lavra/Divulgação

Seu primeiro livro, "Triste Não É ao Certo a Palavra", é uma exposição da intimidade dessa mãe. Antes disso, Abreu já havia transformado o conteúdo da caixa na videoinstalação "Prefiro Rir", exposta no Parque Lage e que pode ser acessada em seu site pessoal.

Em resenha no jornal Valor Econômico, Tatiana Salem Levy revela estar trabalhando num projeto semelhante ainda inédito e elogia a estreia literária de Abreu, comparando o autor a Annie Ernaux e Svetlana Aleksiévitch, duas ganhadoras do Nobel de Literatura. Mas há uma grande diferença.

Levy, em seu livro "Vista Chinesa", ficcionalizou, com o consentimento da vítima, o estupro que sofreu uma amiga. Ernaux autoficcionaliza a própria vida, aqui expondo, ali cuidando para não expor –quem é seu amante diplomata de "Paixão Simples"? Não sabemos. Aleksiévitch nunca escreve sobre si mesma, mas para dar voz coletiva a toda uma comunidade traumatizada, seja pelo acidente de Tchernóbil ou pela Guerra do Afeganistão.

Abreu, por outro lado, simplesmente expôs as cartas, as fotos, a intimidade e a vida de sua mãe, incapaz de consentir, em seu momento mais sensível e enquanto ela ainda está viva no quarto ao lado, sendo reposicionada a cada duas horas pelas enfermeiras.

Uma comparação melhor talvez fosse com Emmanuel Carrère, que teve de reescrever seu "Ioga" porque a ex-mulher ameaçou entrar com um processo se ele não retirasse os trechos em que a intimidade dela e da filha eram expostas sem consentimento.

O escritor francês Emmanuel Carrère, de 'Ioga' - Boris Svartzman/Folhapress

Sobre o diagnóstico da mãe, Abreu escreve "disseram-nos que serão necessários cuidados em tempo integral por uma equipe treinada que se ocupará de sua higienização, alimentação e reposicionamento sobre a cama a cada duas horas, para evitar a formação de escaras". "Rechaço a suspeita de que você não suportaria essa tua nova realidade convencendo a mim mesmo de que não há alternativa."

É a única vez que o filho se refere à mãe como um ser humano capaz de consentir. Talvez não houvesse mesmo alternativa àquele tratamento. Mas sempre havia a alternativa de não expor a mãe em foto, vídeo, texto, no Parque Lage e na Companhia das Letras.

O crítico literário, ao escrever uma resenha, precisa ter em mente que não está apenas diante de um livro. Do outro lado desse livro, sempre existe uma pessoa concreta, o autor, que às vezes deu o melhor de si durante anos para produzir aquele trabalho. Nada disso significa que o resenhista não possa criticar a obra, mas que toda resenha deve ser escrita com cuidado e generosidade.

Então, sim, do outro lado dessa crítica existe uma pessoa real que deve ser respeitada e considerada, não o autor cujo nome está na capa, mas sua mãe, Miriam Martello, exposta em seu momento mais sensível e vulnerável, sem seu consentimento, pelo próprio filho.

No diário de seus primeiros meses, em 1993, Martello de fato se apropria da voz de Abreu. Mas em privado, só para si. Trinta anos depois, em 2023, é a vez dele de se apropriar da voz, da pessoa, da subjetividade de Martello para a desnudar perante todo o Brasil e, no processo, se sagrar artista e escritor.

Salvo exceções, todos os grandes escritores expuseram as pessoas à sua volta. Esse nível de exposição, porém, até bem pouco tempo atrás era inconcebível. Seria válido expor a mãe para produzir uma obra-prima? Talvez. Para produzir "Triste Não É ao Certo a Palavra", certamente não.

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