Mario Sergio Conti

Jornalista, é autor de "Notícias do Planalto".

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Emmanuel Carrère atinge o nirvana em 'Ioga' e aí se enterra na baixaria

Autor parece dizer: fique com sua vidinha enquanto vivo a minha com aventuras metafísicas

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Quatro relatos se misturam em "Ioga", o penúltimo livro de Emmanuel Carrère, publicado agora no Brasil (Alfaguara, 268 págs.). Há primeiro a busca do nirvana, a imersão do autor num retiro radical, destinado à meditação oriental.

Embora penosa, a trilha do autocontrole conduz à dissolução do ego no todo, ao cume sublime para além das dores do mundo. A descrição convence até os céticos mais empedernidos.

O escritor Emmanuel Carrère na Festa Literária Internacional de Paraty de 2011 - Letícia Moreira - 8.jul.11/Folhapress

Mas as dores do mundo não dão trégua. Refugiados na França, terroristas islâmicos atacam o jornal Charlie Hebdo. Chacinam 15 pessoas, entre elas um amigo de Carrère. Ele é chamado para fazer sua elegia no funeral e é tragado pelo caos.

Como o escritor não escapa ao torvelinho, a terceira parte de "Ioga" é lancinante. Ele conta o surto de depressão que o levou à internação num hospital psiquiátrico.

Foi diagnosticado como bipolar e levou eletrochoques. Cogitou suicidar-se e buscou François Roustang, o ex-jesuíta que é um papa da psicanálise lacaniana.

O analista escuta sua "lúgubre ladainha", olha-o nos olhos e diz: "Se você tiver que morrer disso, vai morrer. Não procure nem motivo nem meio de sair disso. Não faça nada, deixe estar: é a única condição para que possa acontecer uma mudança".

De novo, o relato é convincente. Contempla-se por dentro as chagas latejantes de uma depressão cachorra. Entende-se melhor a angústia aguda, lancetada por alguém castigado por ela, mas capaz de expressá-la a quente e racionalizá-la a frio.

Começa a quarta parte do livro. O autor conta sua estadia em Leros, uma ilha na Grécia. Fica ali um centro de triagem de refugiados que fogem das misérias sem fim no Oriente e na África. Eles cruzam o Mediterrâneo e tentam se refugiar na Europa.

Ao centro da imagem um homem escreve em um caderno. Ele tem os olhos fechados e o corpo em posição de meditação. De seu corpo emanam ondas em tons azuis, lilases e amarelos.
Ilustração de Bruna Barros para coluna de Mário Sérgio Conti de 17.fev.23 - Bruna Barros

Carrère convive por dois meses com um grupo de garotos. São meninos que, caso não sejam assimilados pelo Ocidente, irão se radicalizar. Há o risco premente de se tornarem terroristas como os que trucidaram seu amigo do Charlie Hebdo.

O convívio entre o intelectual filantropo e os garotos sem nada é tocante. O escritor toma consciência das atrocidades pelas quais passaram: um deles viu um bebê ser atropelado de propósito por um caminhão. E os refugiados aprendem que a Europa é uma terra de gente de boa-fé.

Apesar do final desconjuntado, "Ioga" recebeu resenhas gloriosas e vendeu centenas milhares de exemplares em semanas. Fofocou-se que ganharia o Goncourt. No lugar do prêmio literário mais prestigiado da França, porém, houve um barraco de assustar cavalos.

Hélène Devynck é uma jornalista de TV ultraconhecida. Viveu com Carrère por 15 anos, nove dos quais casados, e tiveram uma filha. Foi conselheira e personagem de seus livros, que a exaltam em prosa e verso. Até que se separaram devido a um caso extraconjugal dele.

Assinaram um acordo pós-nupcial no qual o escritor concordava em só publicar algo sobre a ex-esposa com sua anuência. Ela fez valer o documento e podou os trechos de "Ioga" sobre o divórcio. Eram páginas que apimentavam o livro, punham mais drama na confissão do autor.

A jornalista francesa Hélène Devynck - Stéphane de Sakutin - 22.jun.21/AFP

Carrère fez o corte drástico, mas acrescentou uma longa citação de um livro anterior, na qual fala de, bingo, Hélène Devynck. Daí se entende por que o final de "Ioga" é desconexo: ele troca uma elipse esdrúxula por um enxerto sem lé com cré.

Ela reclamou e o escritor disse que era absurdo censurar o que já fora publicado. Devynck revidou com um artigo que desmantela "Ioga". Informou que o visitava diariamente no hospital, e ele inventou suas lembranças do período.

Esclareceu que os dois meses em Leros não passaram de alguns dias. Como a estadia na ilha foi antes da hospitalização, o diálogo com os refugiados não serviu, como insinua o livro, para superar a depressão. Ao contrário, foi o preâmbulo da crise que levou aos eletrochoques.

Ela concluiu o libelo afirmando que "a crítica saudou como verdadeira a fábula do homem exposto, honesto e sofredor, que claudicou ladeira acima porque queria se tornar ‘um ser humano melhor’".

Embora tenha mentido, Carrère sustenta que "a literatura é o lugar no qual não se mente". É duvidoso que tenha feito isso para recriar a verdade da sua vida. Porque seu livro proclama o tempo todo a autenticidade da franqueza.

Apesar da crença e da prática da meditação iogue, Carrère parece sussurrar ao leitor: fique aí com sua vidinha aborrecida enquanto eu, um grande artista, desfruto, medito e ganho a vida com aventuras físicas e metafísicas. O nome disso é autoficção.

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