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Relato de estupro, aquilo que ninguém quer falar nem ouvir, inspira 'Vista Chinesa'

Novo romance é baseado na história da violência real sofrida por amiga da escritora Tatiana Salem Levy no Rio de Janeiro

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São Paulo

Estupro. Como escrever sobre aquilo de que não falamos? Por medo, por vergonha ou por um sentimento de culpa que muitas vezes vem do julgamento dos outros, o tema é tabu e pouco relatado pelas vítimas. Em “Vista Chinesa”, o novo romance de Tatiana Salem Levy, porém, ele está em cada página.

O livro é uma carta de Júlia para seus dois filhos, ainda crianças. Nela, ela quer contar que um dia foi estuprada. No Rio de Janeiro de 2014, anos antes, Júlia saiu para correr no começo da tarde de uma terça-feira no Alto da Boa Vista, bairro em meio à floresta da Tijuca. Um homem a deteve com uma arma e a levou para a mata.

“Quando eu pensava em escrever um livro sobre o estupro, pensava em não narrar o estupro todo, achava que narrar fosse fazer com que perdesse a força”, diz Levy, em conversa por vídeo de Portugal, onde vive. Mas, ao fazer as entrevistas com sua amiga Joana Jabace para o livro, mudou de ideia. É na história de Jabace, diretora de TV responsável por “Diário de um Confinado” e “Segunda Chamada”, da Globo, que o livro é baseado.

mulher branca com cabelos escuros e encaracolados em meio a arvores
A escritora Tatiana Salem Levy - Pedro Loureiro/Divulgação

“Percebi que, anos depois, aquilo que estava mais forte para a Joana e sobre o que ela não falava para ninguém eram os detalhes do estupro. Eu tinha então que falar disso, porque é o que as mulheres não falam, sobre o que elas têm mais dificuldade de falar, e o que as pessoas não querem ouvir”, diz Levy, que teve uma série de conversas com a amiga em 2018, quatro anos depois do estupro, para escrever o romance.

A carta de uma mãe para seus filhos, no entanto, tem relação com a história da própria autora. Quando ela tinha quatro anos, sua mãe foi estuprada num assalto. Embora soubesse do caso, foi só com 18 anos, numa conversa com a mãe —que costumava escrever cartas para a família e amigos e que morreria de câncer pouco depois— que soube que, além de assaltada, sua mãe havia sido estuprada.

“Se eu não tivesse perguntado sobre aquele assalto, eu não saberia disso até hoje. Teria sido melhor, teria sido pior? É uma pergunta que me fiz ao longo da vida”, diz ela. “Mas é sempre melhor saber, dar nome às coisas é importante, e sempre sabemos de alguma forma, só que não ter a palavra é sempre pior, sempre um fantasma.”

Além de ser o primeiro livro de Levy escrito a partir da história real de uma pessoa, “Vista Chinesa” é também o primeiro que a autora de, entre outros, “A Chave de Casa” e “Paraíso”, escreve depois de ser mãe. “Meus livros anteriores estavam muito preocupados com um diálogo com o passado, as minhas questões agora mudaram, comecei a ficar preocupada com as questões que eu vou deixar”, diz ela.

O gatilho para que escrevesse o livro, conta ela, foi a visita a uma exposição chamada “Os Inocentes”. A artista americana Taryn Simon mostrou em diversos países essa sua série de fotografias, em que retrata pessoas que foram condenadas pela justiça nos Estados Unidos por crimes que nunca cometeram. “Sempre fico nervosa e impressionada com histórias de pessoas que são punidas por crimes que não cometeram, a injustiça mexe muito comigo”, diz Levy.

Há no romance os relatos das idas e vindas de Júlia à delegacia, sempre desconfortáveis e razão de sofrimento. A partir do momento em que ela resolve levar o caso à polícia, começa uma série de visitas de uma delegada e seus assistentes à sua casa, perguntas e mais perguntas para a composição de um retrato falado e, então, idas à delegacia para reconhecimento de um culpado.

“Sabemos que polícia é mal preparada e que, quando se vê tendo de resolver um crime sofrido por alguém de classe alta, quer prender alguém, qualquer um”, diz Levy. “Esse tipo de pressão faz com que a personagem fique ainda mais confusa, e a probabilidade de acusar alguém que não fosse o culpado era grande.”

Enquanto a protagonista passa pelo estupro e por suas consequências, o Rio de Janeiro vive sua época dos sonhos, quando tudo parecia possível para a cidade e o país. Era 2014, Júlia fazia parte de um projeto de arquitetura para os Jogos Olímpicos de 2016. “O mundo inteiro estava falando do Rio, parecia que o país do futuro estava virando presente, e o Rio era o auge disso”, diz Levy, que não mora na cidade desde 2013.

Mas, quando escreveu o romance, diz ela, a capital fluminense já vivia sua destruição, sua queda vertiginosa, que encontra representação no livro, em que a cidade é mais que um cenário, sendo quase uma personagem. “Organicamente a violência sofrida pela cidade foi se misturando com a violência sofrida por aquela mulher, a destruição do Rio de Janeiro é também uma violência física, sem retorno, e que deixa marcas.”

Vista Chinesa

  • Quando Evento de lançamento com a autora, a psicanalista Maria Homem e a jornalista Carol Pires, dia 18/3, às 19h, no YouTube, Facebook e Twitter da Todavia
  • Preço R$ 54,90 (112 págs.); R$ 29,90 (ebook)
  • Autoria Tatiana Salem Levy
  • Editora Todavia
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