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Emmanuel Carrère se confirma mestre da literatura em 'Ioga'

Escritor se considera aprendiz na prática oriental, mas o mesmo não pode ser afirmado a respeito de sua obra autobiográfica

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Luciana Araujo Marques

Ioga

  • Preço R$ 79,90 (272 págs.); R$ 39,90 (ebook)
  • Autoria Emmanuel Carrère
  • Editora Alfaguara
  • Tradução Mariana Delfini

Em janeiro de 2015, Emmanuel Carrère se inscreve em um retiro para iogues no interior da França. Ali ele pretende passar dez dias em silêncio e desconectado de tudo, ainda que burle as regras propostas para a imersão ao levar consigo um caderno de notas para um novo livro que se tornaria este "Ioga".

emmanuel carrere sentado no sofá em frente a janela
O escritor francês Emmanuel Carrère em sua casa, em Paris - Boris Svartzman - 8.abr.2011/Folhapress

A temporada dedicada à inspiração e expiração é interrompida pela notícia da morte de um amigo e outras dez pessoas no ataque terrorista à sede do jornal Charlie Hebdo no dia 7 daquele mês.

O atentado jihadista —seja em seu impacto mais amplo e social, seja no testemunho íntimo sobre uma paixão tanto inesperada quanto ceifada pela tragédia— não se torna, contudo, a história central de "Ioga".

Recebendo, aos quase 60 anos de idade, um diagnóstico de transtorno bipolar do tipo dois, o francês põe os leitores diante de reflexões com base em situações vividas que, de modo geral, espelham aquilo que os chineses chamam de "lei da alternância" —segundo a qual os fenômenos da vida se dão em duos, como dia e noite, tempestade e calmaria, sucesso e fracasso, e, assim, sucessivamente, enquanto a bipolaridade o converte em uma dupla inimiga entre si.

É após um período de considerável equilíbrio dos afetos e de práticas orientais que Carrère se vê mergulhado em uma depressão melancólica que resulta em quatro meses de internação. Assim, o autor nunca abandona a perspectiva de quem retorna do inferno, com o cuidado de não menosprezar esse lugar como o terreno da danação ao qual ninguém está livre de ir ou voltar.

Ao amor é creditada a conquista da fase da bonança, mas é ele também um campo minado, e o estar vivo entendido como uma "máquina de separação". "Não sou louco: sei bem que todo amor está em risco —que tudo, de todo modo, está em risco—, mas imaginava esse risco como algo vindo do exterior, mais que de mim", escreve o autor, nas primeiras páginas do livro.

Esse par fundamental, espécie de mantra, vai permear todas as histórias contadas em "Ioga" —o que vem de dentro e o que vem de fora.

De um polo, a interioridade, as consequências psíquicas e psiquiátricas, o que se conta para si e se busca observar; de outro, a exterioridade, muito encarnada no que é estrangeiro e ameaça, mas também pede abrigo e aproximação, caso dos refugiados com quem Carrère se relaciona em encontros de escrita na Grécia. Ali, ele próprio e a americana que conduz suas sessões são também forasteiros e têm seus abismos geminados com extrema beleza na narrativa.

A certa altura, Carrère reconhece que ninguém esperaria que justo ele dissesse que ioga e meditação fazem bem. Pois é o que faz com insistência, sem deixar de ser crítico, isto é, de ser ele mesmo, como quando conclui que certo teor de verdade é mais elevado em Dostoiévski do que em Dalai Lama.

O escritor medita bêbado e alça o presente imperioso do sexo, sem precisar dizer que é tântrico, ao que há de mais elevado, brincando com o vocabulário específico. "Devemos ter passado uma hora, talvez duas, desse jeito, sem mudar de posição —por pouco não escrevo ‘de postura’."

Apesar de adepto da prática que dá título ao livro há mais de 30 anos, o escritor se considera um aprendiz. O mesmo não pode ser dito a respeito dele com relação à prática da escrita autobiográfica em seu projeto autoral.

Aquele que entende sua literatura como "o lugar onde não se mente" desta vez procura outras soluções narrativas para poupar os demais envolvidos nas situações. Há um ganho aí na forma como ele o faz, e não me refiro ao seu teor ético.

Dessa prateleira que não se confunde com a de autoajuda, é assumida em "Ioga" uma série de brechas ao ficcional que só confirmam Carrère como um mestre da literatura.

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