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Haruki Murakami reflete sobre o 'eu' em contos um pouco entediantes

Contos de 'Primeira Pessoa do Singular' tentam dar forma narrativa a memórias e fatos banais da vida

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Ligia Gonçalves Diniz

Professora de teoria da literatura na Universidade Federal de Minas Gerais

Primeira Pessoa do Singular

Avaliação: Bom
  • Preço: R$ 59,90 (168 págs.); R$ 37,90 (ebook)
  • Autoria: Haruki Murakami
  • Editora: Alfaguara
  • Tradução: Rita Kohl

No conto que encerra e dá título ao volume "Primeira Pessoa do Singular", Haruki Murakami reflete a respeito das bifurcações que a maioria dos indivíduos encontra na vida —momentos em que é preciso tomar decisões que serão determinantes para quem cada um será dali em diante.

É por meio de cada uma dessas escolhas, conclui ele, que chegamos até aqui, "existindo desta forma" e não de outra qualquer.

O escritor japonês Haruki Murakami - Philip Fong/AFP

O que este conto e, de modo mais amplo, todo o livro tomam como objeto de reflexão é, precisamente, o que constitui essa primeira pessoa do singular, esse eu presente que concentra em si as memórias do que foi, mas também do que poderia ter sido.

É uma forma produtiva de encarar a experiência de produzir e ler ficção: se a cada instante só podemos escolher um dos caminhos que se abrem para nós, como poderemos exercer a vocação humana de testar possibilidades, se não inventando outras vidas?

Podemos ainda estender a questão: será real apenas aquilo que colocamos em prática, ou tudo aquilo que imaginamos —e que exerce certo efeito sobre nós— também conta como a realidade do que somos?

No conto mais interessante do livro, "Charlie Parker Plays Bossa Nova", Murakami exercita essas questões ao criar uma trama na qual uma resenha musical fictícia, que inventa um álbum jamais lançado, traz consequências factuais, eventualmente materializadas em um LP encontrado na prateleira de uma loja.

Leitores acusam o autor da crítica de "brincadeira de mau gosto" e "blasfêmia irresponsável". Não seriam acusações, parece propor Murakami, de que a própria ficção literária poderia ser objeto? Afinal, ao serem inventadas em texto, certas canções podem ser realmente escutadas, mesmo que apenas imaginariamente.

Há, porém, outra forma de pensar o evento ficcional, de que Murakami também lança mão em "Primeira Pessoa do Singular". Não mais relacionada à tensão entre o factual e o imaginário, trata-se agora do exercício de dar forma narrativa —e com ela, algum sentido e algum consolo— à sucessão razoavelmente desinteressante, ou no mínimo presa a contingências banais, da vida como ela é.

Todos já fazemos isso ao transformar memórias em relatos, e é com o duplo movimento do lembrar e do contar que o autor brinca em alguns de seus contos.

Murakami faz isso, porém, de um modo particular, ao não escolher eventos passados que marcaram o narrador por seu significado autoevidente. Ao contrário, o mesmo "eu" que parece conduzir todas as narrativas do livro se vê, nelas, diante de episódios cujo único elemento comum é a força com que voltam à consciência a despeito do sentido que trazem.

"Qual aspecto da vida dos dois personagens é sugerido simbolicamente por esses dois encontros e diálogos entre eles?", se pergunta ele em "With the Beatles", referindo-se a duas pessoas que cruzaram seu caminho e que se unem na memória sem explicação.

Deslizando suavemente da estranheza da vida ordinária a eventos mágicos, Murakami mais uma vez mantém seus leitores em suspensão, na impossibilidade de saber o que é real e o que é apenas recurso psicológico para lidar com uma avassaladora nostalgia do passado e de si próprio. Tendo a memória como matéria, tanto a suspensão quanto a nostalgia ganham força extra.

A escolha por se concentrar justamente naquelas lembranças que se impõem por remeter a experiências sem implicações discerníveis cria para Murakami, porém, uma dificuldade formal.

Não é tarefa simples converter em narrativas bem-sucedidas eventos de nossas vidas cujas consequências serão mínimas: restam como memórias excêntricas e amorfas, cujo aspecto textual é o de detalhes inúteis e de trechos autorreflexivos que soam como um pedido de desculpas ao leitor.

Dizer de eventos narrados que foram apenas "episódios da minha vida insignificante" ou que uma história não tinha foco ou conclusão bastantes para que "funcionasse como ficção" não são gestos suficientes para manter a atenção do leitor, que chega ao final do livro um pouco entediado.

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