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Margaret Atwood insiste, em novas histórias, que o passado se repetirá

Apedrejamentos antigos são o cancelamento de hoje, sugere a autora ao conversar com George Orwell em conto de 'Tig & Nell'

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Ana Luisa Lellis

Roteirista e produtora, tem mestrado em literatura inglesa

Tig & Nell e Outros Contos

Avaliação: Ótimo
  • Preço: R$ 79,90 (272 págs.); R$ 39,90 (ebook)
  • Autoria: Margaret Atwood
  • Editora: Rocco
  • Tradução: Clóvis Marques

À primeira vista, o mais recente livro de Margaret Atwood, "Tig & Nell e Outros Contos", parece uma colcha de retalhos. No entanto, o leitor familiar com sua obra já sabe que a autora não costuma dar ponto sem nó.

A escritora Margaret Atwood, autora de 'O Conto de Aia' e de 'Tig & Nell e outros contos' - Jean Malek/Divulgação

Na coleção, os contos se dividem sob três seções: "Tig & Nell", "Minha Mãe Maligna" e "Nell & Tig".

Enquanto a primeira e a última parte tratam de memórias de um casal ao longo dos anos e do luto de Nell após a morte de Tig, a segunda reúne narrativas insólitas e desconexas —por exemplo, uma mãe que pode ou não ser uma bruxa, a alma de um caracol que entra no corpo de uma atendente de banco, uma entrevista com George Orwell por meio de uma médium e alienígenas contando uma fábula comicamente mal traduzida para humanos em quarentena.

Não há um encadeamento lógico entre as histórias, mas os mesmos questionamentos perpassam todas elas —o que é a identidade, qual a importância da história, os efeitos da imprecisão da memória e das fronteiras tênues entre realidade e ficção. Cada conto contém uma espécie de diálogo temático com a narrativa anterior e a seguinte.

Na coleção, realidade e ficção se misturam tanto dentro das narrativas —amigas debatendo uma fofoca, a suposta loucura de uma mãe, memórias editando o passado— quanto com a realidade da própria autora.

Como Nell, Atwood também perdeu o marido. A obra foi publicada após a morte de Graeme Gibson, seu parceiro de longa data. Os detalhes ficcionais entrelaçados à realidade da autora tornam a dor de Nell a parte mais tocante da coleção. Tig está em todas as memórias dela e, no vazio da frase indizível "agora que Tig...", mora um luto latejante, de onde pulsa o tema central da coleção —nossa mortalidade.

O luto "não é um túnel", diz o texto. "Não tem um fim do túnel do outro lado. O tempo não é mais linear, com os acontecimentos e lembranças em ordem cronológica. Em certos lugares desse tempo pregueado, Tig ainda existe mais vivo que nunca."

Esse tempo "que entorta ou que se dobra" se revela tanto no conteúdo quanto na forma do texto. O leitor deve ter paciência para permitir que as histórias se costurem num diálogo indireto em diferentes níveis e direções.

Explorar os limites entre a ficção e realidade já é de praxe da autora de "O Conto da Aia", livro publicado em 1985 e transformado em série em 2017. Alçada ao estatuto de vidente por causa dos retrocessos nos direitos das mulheres, Atwood sempre rebate que sua ficção especulativa se utiliza só de elementos históricos.

A história se repete, a autora parece querer reforçar. Em um dos contos, Hipácia de Alexandria traz o alerta premonitório: "Quando fragmentos do nosso extinto mundo são escavados [...] o mesmo ocorrerá quando chegar a vez do mundo de vocês. A bola de demolição já foi posta em movimento, embora não em nome da religião, ou pelo menos não oficialmente".

Outros contos também mencionam "momentos de virada" históricos, marcando o fim do mundo antigo e a mudança na concepção de identidade. Ao mostrar o ciclo de gerações em conflito contrapondo presente, passado e futuro em diferentes narrativas, a autora ilustra como, mesmo que civilizações se extingam, nós essencialmente não mudamos.

De apedrejamentos na Alexandria ao "radicalismo revolucionário" atual, nada mudou. "O banimento social ainda acontece e se chama cancelamento", a própria autora, como personagem, explica para Orwell.

Atwood surpreende ao mesclar história e aleatoriedade de maneira inusitada. Algumas das narrativas assumem um tom um tanto inocente, lembrando a simplicidade dos contos de fadas. Que o leitor não se engane: isso é intencional.

Essa simplicidade coincide com o tempo suspenso dessas narrativas e nos remete ao título original, "Old Babes in the Wood" —uma brincadeira com a expressão que se refere a inocentes que entram inadvertidamente em perigo, inspirada no conto infantil sobre duas crianças que morrem abandonadas em uma floresta. Como costumava brincar Tig, "não vamos sair daqui vivos".

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