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Descrição de chapéu Memorabilia

Regina Casé conta por que a poltrona Mole marcou sua vida

Apresentadora fala sobre sua relação com móvel criado por Sergio Rodrigues

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Regina Casé

Memória é comigo mesmo. A minha é de elefante. O problema é que ela lembra tanto que fica difícil chegar aonde eu quero.

Meu avô nunca confessou que tinha medo de avião, dizia que o médico o proibia por causa do coração. Isso pra mim foi muito bom, porque íamos nas férias ver a nossa família, que era toda de Caruaru, de barco (hoje em dia eu tenho um barco e coloquei o nome dele "Caruaru: O Sertão Virou Mar").

Engraçado ir pro Sertão, pro Agreste, pra uma cidade que tem nome de cacto, pelo mar. Íamos de navio até o Recife, desembarcávamos, passeávamos um pouco pela "Veneza brasileira" (dizia meu avô), comíamos uma lagosta e pegávamos um carro alugado até Caruaru.

Isso, claro, com o meu avô já avô, porque novinho ele veio pro Rio de Janeiro sem nada, trabalhou na estiva e conseguiu, acho que por ser um gênio, quebrar a perversa imobilidade social. De carregador de aparelho de rádio virou dono de programa. Com a primeira grana que ganhou, comprou um carro importado e botou no porão de um navio para voltar a Caruaru mostrando que tinha vencido.

Aos sete anos, eu era igualzinha ao que sou hoje. Já entendia que a umburana (Amburana cearensis) do Nordeste não dava só Suassuna, mas também MC Loma (como bem sabe a genial artista Bárbara Wagner).

Regina Casé na poltrona Mole de Sergio Rodrigues; ao fundo, foto do arquiteto e designer - Acervo pessoal

Eu já amava os bonecos do Vitalino ou aquelas figurinhas de alfenim da feira (o último estágio da rapadura vendido em forma de flores, pombinhas, peixes, galinhas) tanto quanto a minha coleção de latinhas de refrigerante estrangeiras (trazidas do exterior por um comandante apaixonado pela minha mãe e por aeromoças conhecidas de algum conhecido nosso).

(Assim como as manicures são pontes incríveis que levam nas suas bolsas Louis Vuitton falsas funks, modas e gírias, naquela época eram as aeromoças pontes aéreas de discos, filmes e estilo.)

Hoje, eu gosto de usar tanto uma alpargata feita pelo meu querido Expedito Seleiro do Cariri quanto um par de "dad's sneakers" da última coleção da Balenciaga. Eu amo todas as minhas samambaias de garrafas pet tanto quanto um filodendro raro do pico da Neblina —de quem cuido como um bebê.

Ainda menina, eu ficava louca na feira de Caruaru. Queria trazer tudo de lá, até o barro do chão do Alto do Moura, cada couro esticado ao sol na beira da estrada; queria trazer até o cheiro do curtume!

Mas meu avô, apesar de ser um nacionalista que beirava o integralismo, não me deixava trazer nada. Achava tudo atrasado. Só queria saber de modernidades, de preferência vindas de fora. E eu, pequenininha, ainda não tinha argumentos como: "O Picasso pirou com o touro do mestre Vitalino!".

Pronto! Cheguei no ponto, ou melhor, na obra.

Voltando de uma dessas viagens nos anos 60, fui à casa do meu tio, o então jovem arquiteto Paulo Casé, e dei de cara com um troço que me impactou. "Que lindo! Como é que você trouxe isso de Caruaru? Meu avô deixou?"

Ele riu e me explicou que não era de lá, mas de um desenhista e arquiteto carioca muito moderno, que tinha ganhado um monte de prêmios "no estrangeiro": Sergio Rodrigues.

Aquilo era a poltrona Mole. E, de cara, resolveu um monte de coisa para mim: isso de ser arcaico e moderno, brasileiro e do mundo todo, pop e "popular".

Detalhe de croqui da poltrona Mole, pelo arquiteto Sergio Rodrigues - Instituto Sergio Rodrigues

Fiquei apaixonada por ela. Sempre que dava, eu fugia para a casa do meu tio (que era vizinha) e ficava sentada nela, sentindo o cheiro do couro, me mexendo pra ouvir o ranger daquelas cintas, como se eu estivesse montada num jeguinho com a cangalha cheia, mas bem acolchoada com lãzinha de umburuçu (Pseudobombax longiflorum) pra não machucar.

Outras vezes, eu ficava ali sonhando que viajava, sentada na poltrona, por todos aqueles museus lá longe onde ela foi exposta.

Esse encontro foi tão importante que me fez amar o design e a arquitetura para sempre (em especial o meu amigo Isay Weinfeld). Logo que cresci, corri para o Sergio Rodrigues, então um arquiteto bem velhinho, e pedi pra ele desenhar uma casa pra mim.

Quando ela ficou pronta, nós nos afastamos de mãos dadas, olhamos e ficamos muito felizes. Ele disse que aquela era a sua casa mais brasileira. E eu disse: "Acho que é a casa mais linda do mundo!". E lá dentro tem uma poltrona Mole, onde fico horas sentada lembrando de tudo isso.

Minha memorabilia é minha mobília.


Regina Casé, 64, é atriz e apresentadora de televisão.

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