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Dirce Waltrick do Amarante

Escritora argentina faz retrato mordaz do meio literário

Em livro de ensaios, Ariana Harwicz desnuda cenário em que imagem do artista vale mais que a obra

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Dirce Waltrick do Amarante

Tradutora e professora da UFSC (Universidade Federal de Santa Catarina). Autora, entre outros livros, de "Para Ler Finnegans Wake de James Joyce" e "James Joyce e Seus Tradutores". Organizou e cotraduziu "Finnegans Rivolta", de Joyce

[RESUMO] Um dos principais nomes da literatura argentina contemporânea, Ariana Harwicz comenta com ironia os embustes da arte hoje, como a prevalência da imagem do artista sobre a obra, cenário marcado por escritores que odeiam escrever e fãs ardorosos que não gostam de ler. Contra isso, Harwicz defende o papel central do paradoxo e da desobediência na criação.

"O Ruído de Uma Época: Aforismos, Correspondências e Ensaios", da escritora argentina Ariana Harwicz, acaba de ser publicado no Brasil, pela editora Instante. O livro propõe uma discussão sobre literatura e arte contemporâneas a partir da necessidade de afirmar o paradoxo e a desobediência.

"Não estou sendo nada original, o paradoxo é ir contra a opinião geral, contra a lógica, é celebrar a contradição", afirma a autora. Quanto à desobediência, ela destaca que houve um tempo em que qualquer pensador, qualquer crítico, qualquer artista afirmava a "sua poética na desobediência [...], na resistência a pensar de uma única maneira. Pensar é pôr em tensão, ao mesmo tempo, duas coisas opostas". Todavia, conclui Harwicz, o que hoje se vê é o enfraquecimento da "necessidade de desobedecer".

Público em debate da Flip (Festa Literária Internacional de Paraty), em novembro de 2023 - Zanone Fraissat/Folhapress

Celebrar a contradição implica, acrescentaria, manter o diálogo aberto, e esse seria o grande problema, já que não é o diálogo, mas a conclusão que tem ganhado prioridade em nosso tempo.

Os leitores brasileiros que já conhecem Harwicz por seus romances breves e "desobedientes", como "Morra, Amor", "A Débil Mental" e "Precoce", os quais compõem uma "trilogia involuntária" sobre o amor e a maternidade, agora vão descobrir uma crítica e ensaísta senhora de si, em textos que ressaltam, com desembaraço, alguns aspectos do círculo artístico e literário contemporâneos.

"Esta época nos presenteia com um novo modelo de artista consagrado e amado. É o artista com seguidores que lotam estádios, que o levam a super recordes, que veem tudo o que ele faz, mas não gostam de sua música, não se emocionam com suas canções. E, então, o que eles celebram? Eles celebram a pessoa", escreve ela.

Com os autores de sucesso a situação seria a mesma, pois "este século nos presenteia com escritores que odeiam escrever e cantores que odeiam cantar, com fãs que odeiam seus livros e suas músicas".

No Brasil, para me situar em um cenário que conheço melhor, os lançamentos de livros parecem estar mais em alta, em razão, obviamente, das redes sociais, que lhes dão visibilidade. Os mais comentados e os que "lotam" são aqueles financiados por editoras que podem cobrir os custos de um evento que atrai celebridades de diversas áreas.

É possível que uma parcela dos livros comprados nesses eventos nem venha a ser lida. Talvez o conteúdo deles não seja tão importante quanto a foto com o escritor do momento. Nesse caso, parte daqueles que comparecem aos lançamentos seriam como os "fãs" descritos por Harwicz.

O papel do debatedor e do crítico, nessas ocasiões, merece um pouco de atenção. Em "O Manuscrito", conto do húngaro Dezsö Kosztolányi que integra o livro "O Tradutor Cleptomaníaco" (tradução de Ladislao Szabo), temos a história de um crítico que recebe um texto volumoso, "escrito por uma distinta e elegante senhora de idade, muito culta, amável, espirituosa, até mesmo inteligente, mas que, quando pegava a caneta, imediatamente perdia essas excelentes qualidades, e escrevia pior que uma escrevinhadora de diários".

De fato, a autora era medíocre, mas o crítico precisava falar sobre a obra dela, pressionado pela projeção social de quem a assinava. Um dia, o crítico é pego de surpresa pela escritora. Pensou em recorrer a um estratagema, mesmo sem ter lido o livro, que consistia em "simplesmente dizer que seu novo romance é excelente e, de longe, sobrepuja os anteriores. Contra isso, pela minha experiência, os que escrevem não costumam protestar".

Mas, no último momento, optou por outra saída e fez algumas restrições à obra. A análise improvisada foi fácil, bastou que usasse os lugares-comuns que calham a qualquer livro insignificante. O crítico estava ciente de que "atrás de seu tema escondia-se um tamanho aborrecimento que atordoava não só aos seus leitores, como à própria autora. Mais de meia hora e fez com que batesse em retirada. Afoguei-a no seu próprio melado, na sua própria limonada quente".

Talvez os críticos ou os debatedores, em lançamentos de livros banais, se sintam às vezes como a personagem do conto de Kosztolányi, que se vê obrigado a comentar com aparente seriedade um livro medíocre de um autor amável, simpático, inteligente e publicado por uma grande editora.

Para o artista, diz Harwicz, o que deveria importar "é a fé na obra, não a recepção da época". No entanto, como também reitera a escritora argentina, parece que hoje o que mais importa é a figura do artista, do escritor, que, em um festival literário, sobe no palco e assume também uma posição política, ideológica, a qual lhe dá um verniz especial. Desse modo, a autora de "Precoce" conclui, apontando mais um problema: "esta época lê mal porque lê a partir da identidade".

Hélio Oiticica denominava, nos anos 1970, de "artista-status" aqueles que buscavam na carreira, acima de tudo, alguma espécie de compensação.

A escritora argentina Ariana Harwicz, autora de romances como "Morra, Amor" e da coletânea de ensaios "O Ruído de uma Época" - Diego Waldmann/Clarin

No século 19, o poeta e ensaísta italiano Giacomo Leopardi já pensava assim, ao citar em um de seus ensaios, publicado postumamente, o pensador francês Jean La Bruyère, o qual, na segunda metade dos anos 1600, teria afirmado "algo muito verdadeiro: que é mais fácil um livro medíocre adquirir fama em virtude de uma reputação já obtida pelo autor do que um autor ganhar reputação por conta de um livro excelente. A isso se pode acrescentar que, talvez, a via mais direta para adquirir fama é afirmar, com segurança e pertinácia, de todos os modos possíveis, tê-la conquistado" (tradução de Adriana Aikawa da Silveira Andrade).

Obviamente, os lançamentos são importantes, pois ajudam a dar visibilidade à obra, fazendo-a circular e encontrar seu leitor. Nenhum escritor escreve só para si.

Em "A Dádiva", Lewis Hyde afirma que "um dom (que pertence ao mundo interior de quem o tem) mantém-se vivo através da constante doação, ou seja, da transformação de algo doado ao mundo exterior. Quando uma produção artística não tem público que a reconheça e que dela se aproprie espiritualmente, essa transição não se dá. É por meio da doação que o artista nutre seu dom. Visto por esse ângulo, quando o comércio é exclusivamente um tráfico de mercadoria, aqueles que criam não podem participar dessa troca que mantém viva sua criação" (Tradução de Maria Alice Máximo).

Se os lançamentos transformarem os livros apenas em commodities, chegará o dia em que primeiro se fará o lançamento e só depois se escreverá o livro. Reformulo aqui uma ideia do escritor argentino Macedonio Fernández, que dizia muito humoradamente: "Poder-se-iam primeiro dar as conferências e só depois anunciá-las" (tradução de Sueli Barros Cassai).

O Ruído de uma época: Aforismos, Correspondências e Ensaios

  • Preço R$69,90 (144 págs.)
  • Autoria Ariana Harwicz
  • Editora Instante
  • Tradução Silvia Massimini Felix
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