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Gênero e raça devem orientar gastos públicos, defende movimento

Falta de dados em programas públicos impede avaliar redução da desigualdade, dizem especialistas

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São Paulo

O orçamento público não alcança igualmente homens e mulheres, tampouco brancos e negros. É o que afirma o guia "Orçamentos Sensíveis a Gênero e Raça", desenvolvido pela Fundação Tide Setubal para estados e municípios e lançado nesta semana durante o Seminário Internacional Orçamento Mulher: Expandindo os Horizontes, em Brasília.

O tema principal do evento, que aconteceu na Câmara dos Deputados, foi a importância de detalhar o orçamento público para haver mais transparência e, principalmente, igualdade de gênero e raça nas políticas públicas.

O documento da fundação, elaborado em parceria com a Tenda das Candidatas ao longo dos últimos dois anos e inspirado pelas experiências de países como Austrália e África do Sul, foi entregue aos deputados no seminário e conclui que as escolhas políticas acabam se baseando em uma estrutura desigual.

"O documento também pretende promover visibilidade para as mulheres no orçamento", disse Pedro de Lima Marin, coordenador do Programa Planejamento e Orçamento Público da Fundação Tide Setubal.

Segundo ele, a questão racial e a desigualdade também precisam constar no plano de despesas públicas.

Roseli Faria, vice-presidente da Assecor (Associação Nacional dos Servidores da Carreira de Planejamento e Orçamento), discursa em seminário - Priscilla Castro/Divulgação

Para Marin, esse processo é importante para traçar recortes de raça e gênero nos programas de governo e para reduzir a desigualdade social. "Com isso, temos clareza se a distribuição da verba é equilibrada e se as políticas públicas estão realmente direcionadas para os que estão em situação de vulnerabilidade. É preciso levar esse olhar para todas as etapas da política."

A distribuição do orçamento não pode ser definida meramente com base em questões técnicas e burocráticas, segundo Roseli Faria, vice-presidente da Assecor (Associação Nacional dos Servidores da Carreira de Planejamento e Orçamento).

"A vida de toda a sociedade é afetada com as decisões de como os investimentos públicos serão aplicados. Há um viés de gênero que faz com que sejam necessários programas específicos. Não podemos esquecer também os indígenas e quilombolas", afirma Roseli.

Para ela, o orçamento transparente e detalhado é a chave para políticas públicas justas. "Lutamos pela democratização do orçamento."

Na opinião de Ana Carolina Querino, da ONU Mulheres, quantificar a verba pública alocada é uma premissa fundamental para que a política social seja efetiva.

"Objetivamente nenhum país acabou com essa lacuna [da desigualdade]. E isso se dá por falta de mecanismos. Houve amadurecimento das ferramentas nos últimos 25 anos no Brasil, mas ainda faltam etapas para alcançar o modelo ideal e igualitário para homens e mulheres."

Ana Carolina cita a estimativa de 2020 da OCDE (Organização para a Cooperação e Desenvolvimento Econômico), que calculou o custo global por se ignorar a discriminação de gênero na sociedade: US$ 6 trilhões (cerca de R$ 30 trilhões).

"Isso corresponde a 7% do PIB global. Quando temos essa noção do gasto público, avançamos. Analisar como o orçamento é desenhado e seu impacto na vida do cidadão é essencial, já que se trata da transformação da vida das pessoas."

Segundo o Unifem (Fundo de Desenvolvimento das Nações Unidas paras as Mulheres, atual ONU Mulheres), no início dos anos 2000, mais de 40 países buscavam implementar o orçamento sensível a gênero, sendo que nove desses países estavam na América Latina, como Argentina, Bolívia, Colômbia e, claro, o Brasil.

Por aqui, uma das primeiras iniciativas desse orçamento no âmbito do Orçamento Geral da União foi o projeto Orçamento Mulher: Controle Social e Equidade de Gênero, formulado pela CFemea (Centro Feminista de Estudos e Assessoria), implementado entre 2002 e 2015.

Para Gilda Cabral, sócia-fundadora da ONG, não basta o orçamento para mulher e gênero estar visível, é preciso que ele seja monitorado por autoridades e pela sociedade civil. "As políticas públicas não estão combatendo a desigualdade e nem o racismo. Muitos direitos das mulheres estão sendo reduzidos."

Ela explica que atualmente os métodos de monitoramento das contas públicas são inviáveis para se fazer um controle social. "Quando se fiscaliza o orçamento, o resultado final são políticas públicas mais efetivas. Evita-se, assim, o desperdício dos recursos públicos."

Funcionalismo público

Pedro Marin afirma que faltam informações básicas nos orçamentos e destaca a saúde mental. "Onde estão esses equipamentos? Eles de fato estão localizados na região onde há maior concentração de negros? Não sei dizer, porque não há esse tipo de dado. Os coletivos de cultura, por exemplo, não sabem quantos desses espaços são liderados por negros ou mulheres."

Outro aspecto do guia diz respeito ao funcionalismo público. De acordo com o documento, com base em dados do sistema de gestão de pessoal da Prefeitura de São Paulo, em julho de 2020 os negros representavam 29% dos servidores municipais.

Segundo a análise da fundação, isso indica que há sub-representação de negros no serviço público paulistano. Outro dado mostra que, embora o município tenha política de cota em cargos de comissão, os servidores negros ocupavam 11% das posições de primeiro escalão, como prefeito e chefe de gabinete.

"O funcionalismo espelha o racismo estrutural. Por isso o orçamento da mulher e raça é tão importante. O Estado deve olhar para isso, porque a maioria de seus servidores é branca. É preciso pensar em políticas de reparação para mudar esse quadro", diz Marin.

Questionada, a Prefeitura de São Paulo afirma que a atual gestão tem intensificado as políticas de combate ao racismo estrutural de maneira ampla e cita a nomeação de três mulheres negras para o mais alto escalão de cargos de confiança: Aline Torres (Cultura), Eunice Prudente (Justiça) e Elza Paulina de Souza (Segurança).

Pedro de Lima Marin, coordenador do Programa Planejamento e Orçamento Público da Fundação Tide Setubal, durante seminário em Brasília - Priscilla Castro/Divulgação

Durante o seminário em Brasília, a deputada federal Marcivânia Flexa (PCdoB-AP) citou o veto do presidente Jair Bolsonaro (PL) no ano passado ao Orçamento Mulher, dispositivo da LDO (Lei de Diretrizes Orçamentárias).

"Não consta dados dos beneficiários dos programas sociais. Essa ausência de informações não permite mostrar se as políticas públicas estão corretas. O poder público é responsável pela redução da desigualdade."

Para o veto, o governo argumentou que as políticas públicas de redução das desigualdades de gênero integram o Orçamento Fiscal. O Orçamento Mulher, depois, foi restabelecido pelo Congresso, que derrubou o veto.

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