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Apagão de dados e ausência de leis de cotas promovem desigualdade racial nos serviços públicos municipais

Brasil não tem dados étnico-raciais de 28% dos vínculos formais de trabalho

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Porto Alegre, Mogi das Cruzes, Belo Horizonte, Recife, Fortaleza, Brasília e Vitória | Énois

Dados do TSE (Tribunal Superior Eleitoral) mostram que três em cada dez prefeituras do país são administradas por homens ou mulheres que se autodeclararam pretos ou pardos. Apesar de mais representativo do que há quatro anos, garantir um funcionalismo público diverso —primeiro passo para promover políticas públicas antirracistas— ainda é um desafio para a maioria das cidades. Isso porque apenas 5% dos municípios brasileiros declararam ter legislação para garantir vagas para a população negra em concursos públicos municipais, segundo dados do Observatório do Trabalho Decente.

Entre as 26 capitais e o Distrito Federal, só oito possuem a garantia de vagas por meio de lei. Mas a existência de ações afirmativas não implica, necessariamente, na sua efetividade. Casos de leis restritivas, pouco divulgadas e até apagão de informações étnico-raciais sobre os servidores mostram o tamanho da desigualdade. Para especialistas, a falta de zelo com dados raciais não é mera coincidência.

Vitória, Porto Alegre, Salvador, São Paulo, Cuiabá, Belo Horizonte, Rio de Janeiro e Brasília são as capitais que possuem lei de cotas nos concursos públicos municipais. No caso de Brasília, a legislação vale para todo o território do Distrito Federal. A lei 6.321/2019 garante 20% das vagas para pessoas negras em concursos com mais de três vagas. Mas, em agosto de 2020, o Tribunal de Contas do Distrito Federal determinou a retificação do edital do concurso para o cargo de analista de apoio à assistência judiciária, da Defensoria Pública, para atender exigências legais, entre elas a criação de uma vaga para candidato negro. No Amapá, Rondônia, Roraima e Acre, nenhum município informou ter legislação para garantir vagas em concursos públicos à população negra.

No Rio Grande do Sul, onde apenas 10% da população se autodeclara preta ou parda, 6,4% dos municípios possuem legislação para garantir essas vagas. Em Porto Alegre, a Lei Complementar 746/2014 assegura aos candidatos negros a reserva de 20% das vagas oferecidas em concursos públicos para cargos efetivos e empregos públicos nos órgãos da administração direta e nas entidades da administração indireta da prefeitura.

Desde que entrou em vigor, 910 servidores ingressaram na administração municipal por essa reserva. O número representa 8% do funcionalismo público atual, que é de 10.879 servidores públicos. No entanto, a falta de dados étnico-raciais impossibilita analisar quais cargos eles ocupam.

Em Pernambuco, apenas dois municípios declararam ter legislação municipal que estabelece cotas para concursos públicos: Ouricuri e Água Preta. Mas os textos das leis não foram encontrados nos portais das prefeituras e das Câmaras Municipais. Movimentos negros locais também desconhecem a legislação. O grupo de trabalho sobre racismo no Ministério Público do Estado tentou buscar normas por meios dos promotores que atuam nas duas comarcas, sem sucesso. Até o Ministério Público do Trabalho (6ª Região) foi acionado, mas, até o fechamento desta reportagem, não havia dado retorno.

“Uma pessoa negra que estudou a vida inteira numa escola pública onde falta professor, por exemplo, dificilmente vai conseguir se preparar para passar em um concurso público e disputar uma vaga com uma pessoa branca que tem acesso a serviços privados de educação. Então, temos um círculo vicioso: não há política pública adequada, não há desenvolvimento, e o acesso a esses cargos são prejudicados”, avaliou a advogada, empreendedora e ativista social, mestranda em desenvolvimento de práticas inclusivas nas organizações, Mariana Ferreira dos Santos.

Em Belo Horizonte, o acesso é garantido pela lei municipal 10.924/2016, que reserva 20% das vagas. Em 2019, foi aberto edital para a Guarda Civil Municipal com 500 vagas, sendo 90 delas para candidatos negros. No entanto, o edital foi suspenso por causa da pandemia e não houve contratações.

O estado do Ceará, primeiro do país a abolir a escravidão em 1884, só sancionou uma lei estadual para garantir 20% das vagas em concursos públicos para pretos e pardos em seu território no dia 25 de março de 2021, dia em que o estado comemora sua Data Magna. Mas, segundo especialistas, as leis mais generalistas têm menos chances de serem cumpridas. Na capital, Fortaleza, o projeto de lei 308/2020, que institui o Estatuto Municipal de Promoção da Igualdade Racial, chegou a ser discutido na Câmara Municipal e encaminhado para apreciação na Comissão de Legislação e Direitos Humanos, mas ainda tramita internamente.

Além da ausência de legislação para reforçar as políticas afirmativas, há um outro problema: a falta de coleta de dados de perfil étnico-racial dos trabalhadores. Segundo levantamento do Ceert (Centro de Estudos das Relações de Trabalho e Desigualdades), nos dados da Rais (Relação Anual de Informações Sociais) de 2019, não há dados classificados por cor de 93% dos servidores públicos do país. Quando os órgãos públicos preenchem os dados de raça/cor de seus funcionários, que admite seis respostas alternativas —indígena, branca, preta, amarela, ou não informada—, 92,7% dos servidores públicos são incluídos na última categoria.

Pessoas em pé com a mão direita erguida como símbolo de resistência na Praça dos Três Poderes
Militantes do movimento negro fazem ato contra a violência racial na Praça dos Três Poderes, em Brasília - Pedro Ladeira - 4.jun.2020/Folhapress

“É muito bom ver alguns estados promulgando lei de garantia de cotas, mas o ideal seria termos uma dessa para cada município, porque, num ambiente micro, as ações afirmativas ficam mais evidentes”, disse o sociólogo do Ceert Mário Rogério, que defende que para além da lei, é preciso coletar dados. “Temos no Rais o registro de informações de mais de 47,5 milhões de vínculos empregatícios. Em 28% destes cadastros, o quesito étnico-racial não foi preenchido, sendo 17% deles na administração pública. Essa que deveria dar o exemplo no zelo e preenchimento dos dados representa o maior gargalo de falta de informação sobre trabalhadores no País”, ressaltou.

Para o especialista, a ausência de zelo com o preenchimento do dado é proposital. “Sabemos que quando propomos a coleta de dados étnico-raciais em órgãos públicos, acontece um movimento curioso para não incluir adequadamente nos cadastros as categorias definidas pelo IBGE, impossibilitando análises ou o preenchimento não é obrigatório. E isso tem uma explicação muito óbvia. Quando você tem um dado étcnico-racial, você acaba com a neutralidade de muitas coisas: da hierarquia, promoções, treinamento e até impacto na saúde dos trabalhadores. Implantamos a coleta desse dado no SineBahia (Sistema de Trabalho e Emprego da Bahia), que tem cerca de 2 milhões de trabalhadores cadastrados e sabe o que descobrimos? Que as empresas não estavam empregando os negros. Só pessoas brancas passaram da fase de entrevista. Então, ter dados revela desigualdades que precisam ser combatidas.”

Impacto

Letícia Bruhns é uma mulher negra, de 34 anos, natural de Serra, na região metropolitana de Vitória, e uma das 3.981 funcionárias negras concursadas da administração municipal. Ela é uma das beneficiadas da lei 9.281/2018, que reserva 30% das vagas oferecidas nos concursos públicos da administração municipal para negros e indígenas.

Auxiliar de consultório dentário desde dezembro de 2020, Letícia ficou em 10º lugar no concurso realizado em 2019, o primeiro concurso público realizado pela prefeitura de Vitória em mais de 10 anos. Além da lei municipal em Vitória, o Espírito Santo possui a lei 11.094/2020, que destina 17% das vagas de concursos públicos para negros e 3% para indígenas. Na prefeitura, 48% do funcionalismo se audtodeclararam preto ou pardo. “Se não tivesse a lei, creio que não teria sido chamada até hoje”, afirma Letícia, que também trabalha como trancista.

Segundo o e-book “Onde Estão os Negros no Funcionalismo Público?”, divulgado pelo República.Org, 28,6% dos servidores públicos ativos da Prefeitura de São Paulo são negros. E eles têm participação maior nos quadros de nível básico, em que representam 48%.

Em cargos mais altos, ou que pagam mais, a disparidade aumenta. Em uma análise por setores, a participação dos servidores negros é maior no quadro de funcionários da Guarda Civil Metropolitana (36,5% do total), nos cargos de direção e assessoramento intermediário (32,8%), nos cargos de gestão governamental (31,5%) e na administração (30%). No Estado de São Paulo, outros 29 municípios afirmaram ter lei de cotas.

Andressa Marques , Ester Caetano , Gabryella Garcia , Jamile Santana , Jordânia Andrade , Kleber Nunes , Natali Carvalho e Thais Rodrigues

Esta reportagem é uma produção do Programa de Diversidade nas Redações, realizado pela Énois - Laboratório de Jornalismo, com o apoio do Google News Initiative. As informações foram apuradas de forma colaborativa entre os veículos BHAZ, Congresso em Foco, Diário do Nordeste, Nonada, ES Hoje, Sul21 e Marco Zero Conteúdo.

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