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Descrição de chapéu The New York Times

Mianmar diz que os rohingyas estão de volta, mas as provas são escassas

Em visita organizada por governo a epicentro de conflito, narrativa oficial é desmentida

Rohingyas atrás de arame farpado na zona de fronteira de Taung Pyo, onde estão em um limbo entre Mianmar e Bangladesh - Adam Dean/The New York Times

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Hannah Beech
Maungdaw (Mianmar) | The New York Times

Vadeamos por uma área inundada, passando por soldados equipados com fuzis, e chegamos a um barracão pré-fabricado.

Do lado de dentro, homens estavam sentados em linha, com as costas apoiadas à parede; policiais e agentes da imigração os vigiavam, de pé. Os homens, pela impressão que nos foi dada, eram parte dos 700 mil muçulmanos rohingyas que fugiram do estado de Rakhine, no norte de Mianmar, rumo a Bangladesh, no ano passado, em um êxodo que os EUA e outros países condenaram como expurgo étnico.

Agora, dezenas deles foram repatriados, segundo as autoridades de Mianmar, graças à boa vontade do governo do país quanto a aceitar os rohingyas de volta, e às fileiras de barracões preparados para receber seu retorno.

Mas em quase todas as interações acontecidas durante uma viagem organizada pelo governo de Mianmar para jornalistas, que nos levou ao epicentro da crise, a narrativa oficial tinha falhas evidentes.

Os homens que estavam em um dos três centros de repatriação organizados pelas autoridades menearam suas cabeças quando perguntados se haviam voltado pacificamente de seu país para Bangladesh.

Disseram que não haviam sido repatriados, de forma alguma. Na verdade, disseram, eles jamais haviam abandonado a região alagadiça, combinação de pântano e montanha, em que vivem em Mianmar, e haviam sido arrastados pela ampla repressão do governo à minoria rohingya.

Rohingya atrás de arame farpado na região de fronteira de Taunt Pyo, um limbo entre Mianmar e Bangladesh - Adam Dean/The New York Times

Certo dia, no ano passado, disseram três dos homens, os soldados os detiveram em sua aldeia, no norte do estado de Rakhine. Cinco meses e meio mais tarde, eles foram libertados e acusados de imigração ilegal.

"Acusaram-nos de ter entrado no país vindos de Bangladesh, mas nós jamais fomos a Bangladesh", disse Abdus Salim. "Rakhine é o nosso lar."

Win Khine, o diretor de imigração, parecia desconcertado. Disse que eles talvez estivessem mentindo. Recusou-se a definir os homens como rohingyas, chamando-os de bengalis, para dar a entender que o lugar deles era em Bangladesh, o país vizinho.

"Os bengalis não são de nosso país porque têm sangue, cor de pele e idioma diferentes dos nossos", ele disse. "Não temos rohingyas aqui."

Fora de Mianmar, a tragédia dos rohingyas é clara. Ao longo das décadas, a minoria muçulmana foi privada de direitos —cursar ensino superior, receber assistência médica e se movimentar livremente —  por um governo budista chauvinista e dominado pelo Exército. A maioria dos rohingyas não tem cidadania.

Mesquita destruída em vilarejo rohingya de Maungdaw, Mianmar - Adam Dean/The New York Times

Quando insurgentes rohingyas atacaram postos policiais e um acampamento do Exército em agosto do ano passado, matando uma dúzia de integrantes das forças de segurança, em poucas horas surgiu um paroxismo de violência contra os civis rohingyas: execuções em massa, estupros e aldeias incendiadas pelas forças de segurança — ações que os representantes das Nações Unidas disseram poder ser caracterizadas como genocídio. Multidões de budistas da etnia rakhine ajudaram na carnificina.

Mas nesta rara viagem ao norte de Rakhine, sob o olhar vigilante de guardas armados, a narrativa oficial divergia da realidade aceita internacionalmente. As autoridades e testemunhas civis nos disseram que os rohingyas queimaram suas próprias casas; que eles são terroristas — e, se não são, não passam de mulheres e crianças manipuladas por grupos obscuros em Bangladesh e outras partes do mundo islâmico.

Mas enquanto nos conduziam pelas áreas enlameadas e ainda com traços de fogo em Rathedaung e Maungdaw, duas cidades no norte de Rakhine, as contradições nos relatos dos representantes do governo se tornavam mais e mais aparentes.

Paramos em uma aldeia no passado habitada por rakhines budistas, por muçulmanos rohingya e pela minoria étnica mro, que até poucos anos atrás costumava viver na selva. Oito mro foram mortos em agosto passado por insurgentes rohingya, disseram as autoridades de Mianmar.

Morador passa por casas pré-fabricadas supostamente construídas para o retorno de rohingyas, em Maungdaw, Mianmar - Adam Dean/The New York Times

Por que a mídia internacional não cobriu esses homicídios, perguntaram autoridades locais que nos acompanhavam na visita? Mas eles não mencionaram os milhares de rohingyas que foram mortos no ano passado, de acordo com organizações de defesa dos direitos humanos.

Como em todos os demais lugares que visitamos, as autoridades da aldeia insistiram em que os rohingyas haviam incendiado suas próprias casas para despertar simpatia internacional.

Mas em dado momento conseguimos conversar livremente com moradores locais, e uma menina, que estaria em perigo se citássemos seu nome, disse que tinha saudades de uma amiga muçulmana que vivia a algumas casas de distância.

"Os rakhine queimaram as casas deles", ela disse, se referindo a civis do grupo étnico budista que dá nome ao estado. "Minha amiga se foi para sempre."

Um homem a corrigiu rapidamente: "Você deveria dizer o oposto", ele ralhou "Deveria dizer que foram eles que queimaram suas casas."

Uma nova escola e um novo pagode budista foram construídos na área que anteriormente abrigava os muçulmanos da aldeia. Os moradores restantes receberam casas novas do governo —filas e mais filas de casas pré-fabricadas — , que parecem incongruentes em um dos lugares mais pobres da Ásia.

Na cidade de Maungdaw, Kyaw Win Htet, diretor assistente do departamento de administração geral do distrito de Maungdaw, ofereceu informações sobre a mudança na demografia da área. Um ano atrás, o distrito tinha 800 mil habitantes. Agora restam 416 mil pessoas. Antes, 90% da população da cidade era muçulmana; agora a proporção de muçulmanos mal chega à metade.

Por que os muçulmanos partiram? Kyaw Win Htet, que é budista, disse não saber ao certo. Ele havia visitado algumas das centenas de aldeias rohingyas queimadas? Não, não visitou. Conhecia algum funcionário muçulmano em seu departamento do governo, já que quase toda a população do distrito era rohingya? Não, não conhecia.

Mais tarde, ele admitiu que a "questão dos bengalis" não era sua atribuição. A especialidade dele é o controle de inundações. A missão de conversar conosco só lhe havia sido dada porque seu chefe estava ausente.

No começo da semana, o governo de Mianmar formou ainda outra comissão para investigar o que exatamente aconteceu no norte de Rakhine. Meia dúzia de comissões como essa já foram formadas, até o momento; nenhuma determinou qualquer coisa de substantivo.

Enquanto isso isso, a liderança de Mianmar continua a negar que tenha havido uma campanha patrocinada pelo Estado para remover os rohingyas do país.

Em um ponto alagado de travessia de rio, alguns poucos rohingyas se aventuravam a cruzar as águas enlameadas. Tínhamos decidido descer do carro porque não sabíamos se ele conseguiria enfrentar a correnteza, e vimos uma mulher idosa, Suma Bibi, e seu marido cruzando o rio. Eu queria falar com ela, e por isso nos abrigamos por sob a cobertura de um posto de fronteira, para escapar da chuva. Ela estava tremendo.

"Estou com medo", ela sussurrou, apontando com o queixo para os policiais armados posicionados atrás de mim. "Não quero ficar perto de pessoas como essas."

Bibi disse que havia tentado sem sucesso escapar para Bangladesh, quando sua aldeia foi destruída pelo fogo.

"Quero partir", ela disse. "Mas não posso."

Tradução de PAULO MIGLIACCI

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