Siga a folha

Descrição de chapéu refugiados indígenas

Indígenas venezuelanos protestam contra plano de 'superabrigo' em Boa Vista

Líderes waraos dizem não terem sido consultados; Operação Acolhida afirma que reestruturação é benéfica

Continue lendo com acesso ilimitado.
Aproveite esta oferta especial:

Oferta Exclusiva

6 meses por R$ 1,90/mês

SOMENTE ESSA SEMANA

ASSINE A FOLHA

Cancele quando quiser

Notícias no momento em que acontecem, newsletters exclusivas e mais de 200 colunas e blogs.
Apoie o jornalismo profissional.

Flávia Mantovani João Paulo Pires
São Paulo e Boa Vista

O plano de unificar três refúgios para indígenas venezuelanos da etnia warao em Roraima, com a transferência de 1.500 deles para um mesmo espaço, está gerando tensão e revolta entre os abrigados. Eles afirmam não terem sido consultados e temem que a mudança traga precarização das condições de moradia. Nesta sexta-feira (12), parte deles deixou os abrigos atuais, como forma de protesto.

Os locais ficam em Boa Vista e são geridos pela Operação Acolhida, força-tarefa humanitária que atende os refugiados venezuelanos no Brasil formada por governo federal, Exército, ONU e entidades parceiras.

Indígenas warao, da Venezuela, em frente ao abrigo Tancredo Neves, em Boa Vista, um dos que devem ser desativados - João Paulo Pires/Folhapress

O projeto prevê que os ocupantes de três dos abrigos —Pintolândia, Nova Canaã e Tancredo Neves— sejam transferidos para outro que hoje concentra venezuelanos não indígenas, o Rondon 3, considerado o maior abrigo para refugiados e imigrantes da América Latina. Segundo a Acolhida, inicialmente o local terá capacidade para 1.500 indígenas, com possibilidade de ampliação para 2.000.

Com isso, sobraria apenas um dos quatro abrigos atuais para os waraos, o Jardim Floresta, apontado como "vitrine". Os demais vêm enfrentando problemas estruturais e sanitários, como esgoto a céu aberto, insegurança e falta de privacidade.

A Operação Acolhida e o Acnur (comissariado da ONU para refugiados) dizem que a mudança está sendo proposta por uma necessidade de melhoria da infraestrutura de atendimento a essa população. Segundo os órgãos, ela trará benefícios como espaço maior, mais acesso a serviços e segurança centralizada.

Mas os indígenas e alguns trabalhadores humanitários que atendem essa população afirmam que o plano visa um corte de recursos, e que a concentração de pessoas pode gerar tensões internas e externas —com os venezuelanos não indígenas que vivem nos abrigos vizinhos, Rondon 1 e 2. Eles também temem ser afetados por problemas de violência urbana que afetam a região, como recrutamento de jovens por facções criminosas, tráfico de drogas e prostituição.

Uma de suas principais reclamações é não terem sido consultados com antecedência sobre a questão, como prevê a Convenção 169 da OIT (Organização Internacional do Trabalho), referente aos direitos de povos indígenas e tribais.

O aviso oficial só foi feito nesta quinta (11), em uma reunião tensa entre os waraos e representantes do Acnur e da Acolhida —após semanas de boatos. Um funcionário, que falou à reportagem sob a condição de não ser identificado, disse que ele e os colegas estavam sendo orientados a dizer que não sabiam de nada, caso questionados sobre o assunto pelos indígenas.

O aidamo (cacique) Avigail Reinosa, 36, disse que o Acnur só mostrou o projeto de reestruturação, sem pedir a opinião dos waraos. Ele afirma que o Rondon 3 não é arborizado e tem incidência direta de sol durante todo o dia, com barracas que são muito quentes.

Reinosa também menciona a violência do bairro 13 de Setembro, onde fica o abrigo. "A zona é dominada por facção criminosa, circulam drogas, armas, tem prostituição. Nossa população vai ficar muito vulnerável", afirma, acrescentando que a experiência ocorreu no início da operação e se mostrou problemática.

Alguns refugiados venezuelanos já foram vítimas de crimes na região. Em agosto deste ano, o warao Junior José Zambrano Camacho, 28, foi morto uma semana depois de ter sido transferido para um refúgio de não indígenas. Ele foi encontrado com pés e mãos amarrados e sinais de tortura.

Primo de Camacho, o aidamo Nail José Fuentes, 32, é responsável pela comunidade no abrigo Tancredo Neves. "Não esperamos ter uma relação muito boa com os jotarao [venezuelanos não indígenas]. Tem pessoas más que se aproveitam da nossa situação e querem nos obrigar a fazer serviços sujos, nos ameaçando."

A reportagem presenciou a abordagem de funcionários aos indígenas que protestavam na frente do Tancredo Neves. Eles dizem que as famílias que saíram de lá já pretendiam deixar o local desde a semana passada e que a decisão não tem a ver com o plano de unificação.

À Folha a Operação Acolhida afirmou que não há previsão para o início da reestruturação e que o Rondon 3 deve passar por adaptações, com área para artesanato, espaços de sombra, cozinhas tradicionais, parque infantil e área verde para plantas medicinais e cultivos tradicionais. "O processo de realocação durante a reestruturação é gradual e voluntário", diz o comunicado.

O Acnur respondeu que a realocação visa aprimorar os serviços oferecidos e "buscar maior alinhamento com os padrões internacionais de resposta humanitária emergencial" e começará somente após uma "ampla consulta" à comunidade indígena abrigada.

Segundo a agência, a maior privacidade das tendas deve reduzir conflitos internos, e a proximidade de outros refúgios possibilitará entrega mais eficiente de serviços aos indígenas. Sobre a violência no bairro, o Acnur afirma que os abrigos são protegidos por militares e serviços terceirizados, com portaria e segurança 24 horas, e que a centralização aumentará a proteção em relação à situação atual.

O órgão disse ainda que não houve corte de recursos para a operação em 2021 —o orçamento do ano que vem ainda não foi fechado. A União, porém, vem reduzindo a verba destinada à Acolhida: de R$ 280 milhões em 2020, o valor caiu para R$ 90 milhões neste ano. O ministro da Defesa, Walter Braga Netto, chegou a dizer que a verba atual só permitia manter as ações até o fim de julho e pediu mais R$ 178,9 milhões ao governo.

Nesta semana, uma comissão do CNDH (Conselho Nacional de Direitos Humanos) que fazia uma visita a Roraima recebeu uma carta de uma liderança warao explicando sua oposição à unificação dos refúgios.

O presidente do CNDH, Yuri Costa, afirma que o conselho "vê com muito cuidado" a diretriz de concentrar os refugiados e que vai acompanhar para verificar se esse sistema produzirá violação de direitos humanos. "O que mais preocupa a gente é o abrigamento indígena. Houve visivelmente uma resistência dos indígenas, que estão reclamando que não estão tendo o processo de consulta prévia respeitado. O conselho acha que essa consulta deve ser feita."

Receba notícias da Folha

Cadastre-se e escolha quais newsletters gostaria de receber

Ativar newsletters

Relacionadas