Os genomas brasileiros
Estudo sobre a influência da escravidão revela a diversidade genética das populações
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Gosto de imaginar os genomas dos brasileiros, hispano-americanos e afro-americanos, povos miscigenados por antonomásia, como mosaicos de ancestralidades europeias, africanas e nativas americanas.
Embora o genoma seja linear, as implicações da informação que guarda o fazem multidimensional. O Carnaval, por exemplo, é uma das melhores metáforas brasileiras da miscigenação, sendo frequentemente interpretado em termos de miscigenação, ancestralidade e história, conceitos polêmicos no Brasil e nas Américas. Nós, cientistas que estudamos os genes humanos, também nos ocupamos desses conceitos, em parte pela necessidade intrinsicamente humana de conhecer nossa história, mas principalmente porque a distribuição geográfica de variações do genoma que causam doenças (por exemplo, anemia falciforme) depende da história.
A ciência que combina biologia, estatística e ciências da computação para ler a história no DNA é a genética de populações humanas, com forte tradição no Brasil. Parafraseando Isaac Newton, quando nós, geneticistas de populações da minha geração enxergamos longe, é porque estamos em cima dos ombros de pesquisadores brasileiros como Francisco Salzano (falecido em 2018) e Sérgio Pena, que colocaram o Brasil no mapa da genômica humana mundial.
Nessa tradição, meu grupo de pesquisa da Universidade Federal de Minas Gerais acabou de publicar ante a comunidade científica internacional o maior estudo sobre a influência da escravidão na diversidade genômica das populações das Américas. Além de confirmar que a ancestralidade africana predominante nas Américas originou-se de países como Nigéria e Gana, na África centro-ocidental, descobrimos que a ancestralidade do oeste africano (por exemplo, Senegal e Gâmbia) aumenta em direção ao norte do continente americano, sendo rara no Sudeste e Sul do Brasil, onde a ancestralidade dos povos bantu, do sul e leste da África, apresentam a sua maior prevalência.
Isso foi uma consequência dos ventos e correntes oceânicas que determinaram dois sistemas de navegação atlântica (norte e sul), e da geopolítica do período colonial, com Portugal como único protagonista com enclaves permanentes no sul e leste da África, e Rio de Janeiro como porto principal de desembarco de escravizados no Sudeste do Brasil.
Comparando dados do genoma e de fontes históricas, descobrimos que com o pico da chegada dos africanos escravizados nas Américas, entre 1750 e 1850, se intensificou com a miscigenação biológica, de forma que esse período foi crítico em moldar nossa natureza miscigenada. Por outro lado, a diáspora africana foi tão grande (acima de 10 milhões de pessoas), que a diversidade genética encontrada nas porções africanas dos nossos genomas é semelhante àquela das populações africanas de origem, as mais diversas do mundo. Mas a miscigenação homogeneizou esta diversidade e as mutações responsáveis por doenças entre as diferentes populações das Américas.
Um problema de saúde global é que a medicina sabe muito mais sobre doenças, resposta a fármacos e genética das populações de origem predominantemente europeia quando comparado com outras populações, como as africanas ou os nativos das Américas. Essa desigualdade limita a aplicação dos avanços da medicina de precisão nessas populações. Por isso, no Brasil, onde nosso genoma tem componentes africanos e nativas americanos, precisamos de estudos como o nosso sobre a escravidão, o que além de ser uma escolha ética e uma necessidade do Sistema Único de Saúde, é uma oportunidade econômica.
A medicina de precisão representa um mercado mundial crescente de mais de US$ 7 bilhões, no qual empresas brasileiras de diagnósticos, software e gestão de big data podem se integrar. O know-how brasileiro para atuar neste mercado foi e é principalmente desenvolvido em universidades e institutos públicos, os melhores do país, os quais, com a exceção de iniciativas atuais muito louváveis do Ministério de Saúde, são hoje negligenciados, quando não difamados.
Quando a emergência do coronavírus nos impõe medidas baseadas no tratamento científico das evidências, a importância de cuidar do tecido científico brasileiro fica evidente. Tomara que aprendamos a lição.
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