Siga a folha

Descrição de chapéu A mulher da casa abandonada

Podcast procura a mulher da casa abandonada com ajuda de vizinhos

Sexto episódio também explica os desdobramentos da acusação contra Margarida e o que pode acontecer com o casarão

Assinantes podem enviar 5 artigos por dia com acesso livre

ASSINE ou FAÇA LOGIN

Continue lendo com acesso ilimitado.
Aproveite esta oferta especial:

Oferta Exclusiva

6 meses por R$ 1,90/mês

SOMENTE ESSA SEMANA

ASSINE A FOLHA

Cancele quando quiser

Notícias no momento em que acontecem, newsletters exclusivas e mais de 200 colunas e blogs.
Apoie o jornalismo profissional.

São Paulo

O sexto episódio de A Mulher da Casa Abandonada, podcast da Folha que investiga o passado de crimes por trás de uma mansão degradada em São Paulo, narra as buscas da reportagem por Margarida Bonetti.

O objetivo é que ela finalmente dê uma entrevista e conte a sua versão sobre a acusação de ter mantido uma empregada doméstica em condições análogas à escravidão durante 20 anos nos EUA. A equipe do podcast recebe a ajuda de vizinhos nessa missão, que se revela árdua.

O programa também explica o que se sabe sobre os desdobramentos jurídicos das acusações e entrevista um reconhecido advogado criminalista para analisar o caso. Além disso, aponta o que pode acontecer com o casarão de Higienópolis futuramente.

O sexto episódio do podcast já está disponível de graça nas principais plataformas de áudio, como Spotify, Apple Podcasts e Deezer, além do YouTube. A transcrição do roteiro está disponível no fim deste texto. O sétimo episódio vai ao ar em 20 de julho.

O podcast A Mulher da Casa Abandonada investiga a vida de uma brasileira que foi procurada pelo FBI - Editoria de Arte

A Mulher da Casa Abandonada é apresentado e escrito por Chico Felitti, autor do livro "Ricardo & Vânia", que narra a história de vida de um artista de rua conhecido como Fofão da Augusta, e que foi finalista do Prêmio Jabuti de 2020. Felitti também criou e apresenta "Além do Meme", série documental em áudio exclusiva do Spotify —eleita o Podcast do Ano pelo Prêmio Splash UOL em 2020.

A série tem participação da atriz e dramaturga Renata Carvalho, que interpreta em português as entrevistas feitas em inglês, e de Magê Flores, que apresenta o Café da Manhã, podcast diário da Folha, e também coordena a produção de A Mulher da Casa Abandonada. A edição de som do podcast é de Luan Alencar, e a produção é de Beatriz Trevisan e Otávio Bonfá.

Transcrição do sexto episódio

Um Fim que Não É Bem Um Fim

Este podcast é uma reportagem que se baseou em registros de um caso de notório interesse público. Procurou ouvir todos os envolvidos e deu espaço às versões dos que se manifestaram. Essa série não é uma investigação policial, nem um processo judicial. A Folha condena qualquer tipo de agressão e perseguição contra as pessoas aqui retratadas.

VINHETA DE TRANSIÇÃO

Eu estou na praça Vilaboim numa madrugada do fim de maio. A produtora Beatriz Trevisan está comigo. Cada um tá sentado em um banco de madeira, de frente pra uma muda de árvore. Esse pé de ipê foi plantado no lugar em que ficava uma árvore derrubada na antevéspera do Natal de 2021, sob os protestos de uma mulher com o rosto coberto por pomada branca.

[Beatriz] Eu acho muito legal passar pelos lugares que você fala na história e reconhecer e ir lembrando.

[Chico] É, a árvore era ali ó.

[Beatriz] Ahhhh boa!

[Chico] A árvore era exatamente ali.

Eu mostro para a Beatriz os lugares que aparecem no primeiro dia em que eu conversei com Margarida Bonetti.

[Chico] Aqui é o Louveira, aqui é a farmácia que ela entra…. Aqui é o ponto de táxi que ela pega sempre, que eu entrevistei o taxista.

Faz exatos cinco meses que eu encontrei Margarida ali, lutando contra a derrubada de uma árvore. Em 150 dias, o lugar que ela ocupa na minha mente migrou. Foi de uma ex-socialite excêntrica que morava numa mansão caindo aos pedaços a uma pessoa acusada de um crime impensável: de submeter alguém a trabalho análogo à escravidão por 20 anos e, segundo relatos da Justiça americana, de agredir essa pessoa.

Eu e a Beatriz voltamos à praça no fim de maio porque precisamos ouvir essa mulher. Deixar registrado que estamos fazendo um documentário sobre a história dela, e oferecer a chance de contar a versão dela dos fatos. O que chamam no jornalismo de outro lado. Ela nunca deu uma entrevista sobre o caso. E parece que não vai ser dessa vez.

A mulher da casa abandonada nunca mais apareceu.

Faz meses que ela me ignora. Não atende mais quando eu ligo. Foge quando eu passo na frente da casa e tento conversar com ela. Então, a gente decidiu esperar o tempo que fosse até ela sair da casa, para falar com ela.

VINHETA DE ABERTURA

Eu sou Chico Felitti e esse é o sexto episódio de A Mulher da Casa Abandonada, um podcast da Folha que investiga a história de uma brasileira acusada de manter uma empregada doméstica em trabalho análogo à escravidão nos Estados Unidos por quase 20 anos. Essa mesma mulher, Margarida Bonetti, se esconde há duas décadas numa mansão abandonada em um dos bairros mais ricos do Brasil.

Episódio seis: Um Fim que Não É Bem Um Fim

VINHETA DE TRANSIÇÃO

Depois de cinco meses, eu estou na esperança de dar um fim a essa história. É uma expectativa modesta. Bem mais micha do que os planos de meses atrás. Quando eu descobri que a mulher da casa abandonada era uma foragida, talvez tenha brotado em mim a expectativa de resolver alguma coisa. De ligar para o FBI e dizer "está aqui a pessoa que vocês procuram", e que um helicóptero fosse descer do céu e apreender uma procurada pela polícia. A justiça estaria feita. O arco da história estaria completo. Mas eu já adianto. Dou um spoiler mesmo: isso não vai acontecer, porque essa história é real, e não uma ficção escrita por um estúdio de Hollywood.

Acontece que eu escondi uma coisa de vocês até agora. De propósito. E eu peço desculpa sem realmente sentir culpa, porque era importante para a história que eu deixasse para contar só agora.

Lembram da Mari Muradas, a doula que mora perto da casa abandonada? A vizinha que primeiro pensou em ajudar a senhora que morava na mansão em pandarecos, até descobrir que ela era acusada de ter mantido uma empregada em condições análogas à escravidão por quase vinte anos? Pois é. A Mari é cidadã americana. E, no auge da indignação dela ao descobrir quem era a mulher da casa abandonada, ela entrou em contato com o FBI.

[Mari] Eu mandei e-mail pra FBI tipo pra falar essa mulher está aqui.

A Mari Muradas passou o nome completo e o endereço de uma foragida. Isso faz mais de dois anos. E, por mais que a gente não saiba o que a polícia federal americana fez com essa informação, a gente sabe de outra coisa. O que ela não fez. Margarida não foi presa. Ela continua num exílio auto-imposto na casa abandonada. Ela não foi julgada pelos crimes. Ela continua livre para ralhar com funcionários da prefeitura de São Paulo que estão podando uma árvore na antevéspera do Natal. É uma mulher que sai pouco por escolha, não porque teve a liberdade revogada pela lei.

Depois de investigar o caso, encontrar a pessoa que reconquistou a liberdade dela e chegar perto do ex-marido de Margarida, que cumpriu a pena dele, resta uma dúvida para essa história. Uma dúvida enorme, tatuada na minha mente.

Por que a Justiça perdeu Margarida Bonetti?

VINHETA DE TRANSIÇÃO

Para começo de conversa, nunca existiu a possibilidade de Margarida ser levada de volta aos Estados Unidos para ser julgada. É uma questão constitucional. O inciso LI (51) do artigo quinto da Constituição Brasileira é claro: "Nenhum brasileiro será extraditado". Ou seja, o governo brasileiro não iria colocar Margarida em um avião com destino a Maryland, onde ela seria julgada. Mas existia , sim, uma possibilidade de ela responder aqui pelos crimes de que era acusada.

E é para entender esse jogo de cooperação entre países que eu procuro um dos advogados que mais entende de direito internacional no Brasil.

[som de ligação do Skype]

[João Mestieri] Alô?

[Chico] Boa tarde, professor João?

[João Mestieri] Sim, tudo bem?

[Chico] O Chico Felitti da Folha de S.Paulo, tudo bem com o senhor?

João Mestieri é professor adjunto da PUC do Rio. É também o advogado que ocupa a cadeira 16 da Academia Brasileira de Letras Jurídicas. Foi consultor de tribunais americanos durante décadas.

[João Mestieri] Tudo bom, querido. É que você estava ligando e o meu telefone, (risos) seletivo, estava empurrando o seu chamado para spam ou alguma coisa assim.

Mas tem outro motivo para eu ter ido atrás do professor João Mestieri. Uma entrevista que ele deu 20 anos atrás para o site Consultor Jurídico, um dos mais respeitados sobre direito. Nela, ele fazia essa previsão, lida pela Magê Flores

[narração de Magê Flores]

Margarida Bonetti, patroa da empregada escravizada nos Estados Unidos, fugiu para o Brasil mas não escapará da lei. Segundo o professor João Mestieri, consultor de alguns tribunais federais americanos, e o defensor público Franklin Dore, ela não escapará da prisão. Mesmo que o governo negue sua extradição, a ex-patroa será processada aqui pelos crimes cometidos no exterior, de cárcere privado e de escravidão: o código penal brasileiro prevê sua punição com um mínimo de dois anos de prisão e um máximo de oito para cada crime.

A previsão do professor Mestieri não se confirmou. Em 2022, Margarida acumula meia dúzia de processos. Todos ligados à herança dos pais dela. Nenhuma ação criminal pelo que ela foi acusada de fazer com a empregada.

Como todo bom professor, João Mestieri começa do começo. Ele analisa primeiro se o caso poderia ter sido trazido à justiça brasileira.

[João Mestieri] Primeira coisa: qual é a competência brasileira? Se ela é brasileira, há competência. Se o crime é cometido no Brasil, há competência. Se o crime é cometido contra brasileiro, é competente. E por aí vai.

E a resposta para maioria dessas perguntas é sim: ela é cidadã brasileira e o suposto crime foi cometido contra outra cidadã brasileira. Isso facilitava a transferência do caso para a Justiça brasileira. Se uma das duas fosse americana, por exemplo, já seria mais complicado.

[João Mestieri] É crime no Brasil também ou não? Entendeu? No caso poderia ser um ato selvagem, um ato absurdo, um ato imoral, imoralíssimo, mas… não ser um crime.

Outro sim aqui. O que Margarida fez é crime, segundo a lei brasileira. O artigo 149 do código Penal define o crime: "Reduzir alguém à condição análoga à de escravo, quer submetendo-o a trabalhos forçados ou a jornada exaustiva, quer sujeitando-o a condições degradantes de trabalho, quer restringindo, por qualquer meio, sua locomoção em razão de dívida contraída com o empregador ou preposto".

[João Mestieri] Como a escravidão não é mais oficial, você tem um crime reduzir alguém a condição análoga à escravidão. Análoga, parecida com, né? E ela estava submetida pela prova, né, prisional. Esse promotor conseguiu trazer essa situação, foi interrogada e tal como sempre e ela expôs com a simplicidade peculiar, mas ela admitiu e descreveu todos os pontos essenciais desse crime.

Tá. Então, Margarida poderia ter sido julgada aqui pelos crimes de que era acusada nos Estados Unidos, que também eram crimes no Brasil. Além disso, o advogado afirma que havia um corpo de provas que podia compor um caso.

Então, com tudo isso, era só a promotoria americana ter mandado uma carta rogatória para o Ministério da Justiça, em Brasília, pedindo que a Justiça brasileira abraçasse o caso.

[Chico] Porque geralmente pela pela lei seria isso né? A justiça americana pediria a colaboração do governo brasileiro e o governo brasileiro colaboraria, né?

[João Mestieri] Uhum. É verdade. É verdade verdadeira.

Simples assim. Uma carta rogatória é um documento de duas, no máximo três páginas. Mas algo aconteceu no meio do caminho. Porque Margarida não foi processada por esses crimes. Então, há duas possibilidades. Primeira: a promotoria do Estado americano não mandou essa carta. Segunda: o Judiciário brasileiro não respondeu com ações a esse pedido.

[João Mestieri] Agora, sem a cooperação de Brasília é impossível adivinhar o que aconteceu.

E Brasília não cooperou. Eu escrevi para o Ministério da Justiça com todas as informações sobre o caso e perguntei se havia registro de uma carta rogatória pedindo que a Justiça brasileira abraçasse o caso de Margarida. A resposta foi a seguinte:

[narração de Magê Flores]

O Ministério da Justiça e Segurança Pública não se manifesta sobre pedidos ou processos migratórios de determinada pessoa. Em cumprimento à legislação vigente, o MJSP presta informações sobre processos individualizados somente aos respectivos titulares ou pessoas autorizadas por lei.

E eu também fui perguntar para a promotoria do Estado americano em que Margarida foi acusada. Também não tive resposta. Ou seja, não dá para dizer se os Estados Unidos não pediram a ajuda da Justiça brasileira ou se foi a Justiça brasileira que ouviu o pedido e não agiu.

O professor resume o que a gente sabe sobre o caso.

[João Mestieri] Sabe-se que ela não sofreu nada. Ela veio pro Brasil, se livrou disso. Bom, por que ela se livrou disso?

Eu gostaria muito de saber. Mas, parece que vou parar nessa dúvida: quem foi que não agiu, a Justiça americana ou a Justiça brasileira? É um beco sem saída, porque essa informação não é pública.

Essa história de colaboração jurídica internacional pode parecer uma operação complicada demais para ser colocada em prática, eu sei. O tipo de coisa que só existe no papel. Mas acontece com alguma frequência. E há casos de brasileiros que foram julgados aqui por crimes que cometeram do outro lado do mundo.

Um dos mais notáveis parece ter saído de um romance policial. Em 2001, dois brasileiros foram recrutados em São Paulo pela Yakuza, maior máfia do Japão, para matar um comerciante em Tóquio. Um homem que não estava pagando a taxa de proteção da Yakuza. A máfia escolheu assassinos brasileiros por pensar que eles não seriam presos. Os dois entraram na casa do homem e dispararam contra ele e a esposa. Ela sobreviveu. Ele, não. Os dois brasileiros, então, fugiram. Conseguiram cruzar o mundo e voltar para casa, onde pensavam estar fora do alcance da lei. Cada um recebeu pelo crime 3 milhões de ienes, o que na época dava 71 mil reais.

A Justiça japonesa emitiu uma dessas cartas rogatórias. Um pedido de cooperação. E o caso foi trazido para a Justiça brasileira. A polícia daqui abriu uma investigação e… eles foram presos. Tudo bem que só foram encontrados em 2011, dez anos depois do crime. Mas foram. E o julgamento levou mais cinco anos para acontecer. Rolou em 2016. E eles foram responsabilizados por um crime que tinham cometido 15 anos antes.

[trecho de reportagem da Record TV sobre o caso Yakuza]

Foram condenados os dois brasileiros que mataram um comerciante japonês a mando da temida máfia Yakuza, perigosíssima. Acompanhe comigo a reportagem

Cristiano da Silva Severo Ito foi condenado a 22 anos e um mês de prisão. A pena de Marcelo Cristian Gomes Fukuda foi de 23 anos e 7 meses de prisão.

Algo parecido poderia ter acontecido com Margarida Bonetti. Os Estados Unidos, inclusive, têm um acordo de cooperação jurídica com o Brasil. Mas não aconteceu. E provavelmente não vai acontecer mais. O professor Mestieri explica que os crimes de Margarida não podem mais ser punidos, porque as justiças não agiram a tempo.

[João Mestieri] Ela é brasileira, voltou para o Brasil, território nacional e tal e etc etc. É crime aqui também. É… lógico. Agora… não aconteceu. Por que não aconteceu? Provavelmente deveria estar prescrito pela lei brasileira.

Crimes prescrevem. É como se tivessem uma data de validade. Se o Estado demorar além do prazo previsto para processar um cidadão, ele perde esse direito. Ou seja, a pessoa não pode mais ser punida pelo crime.

Por exemplo, se a possível pena do crime ficar entre um e dois anos de cadeia, o crime dessa pessoa vai prescrever em quatro anos. Se a pena prevista for maior do que oito anos de cadeia, mas menor de 12 anos, o crime prescreve em 16 anos. Se a pena abstrata for maior do que 12 anos, o crime deixa de ser passível de punição depois de 20 anos. E sabe quanto tempo faz que o crime de Margarida foi investigado e denunciado? Vinte e dois anos. Como diria o professor Mestieri.

[João Mestieri] Então nós temos prazo, vinte anos prescreve tudo, até homicídio da avó.

Em vinte anos prescreve tudo. Ou seja, mesmo que houvesse uma movimentação em 2022 para que Margarida respondesse às acusações dos Estados Unidos, é muito, mas muito improvável que a Justiça pudesse fazer qualquer coisa. Na avaliação do professor, ela não será mais punida pelos crimes de que foi acusada.

Tá. Eu entendo a sua frustração. Até porque eu vivi uma frustração parecida. Vivi durante os cinco meses em que estive debruçado sobre essa história. Ela nasce porque a gente acredita na Justiça. Se uma pessoa cometeu um crime, ela vai ser julgada por ele. Se for considerada culpada, vai ter que cumprir uma pena, que pode ser uma multa ou um tempo de reclusão. Mas, nesse caso, houve denúncia de crimes. Houve uma investigação que levantou provas. Houve até uma condenação unânime do marido de Margarida no tribunal do júri. Mas, com ela, não houve nada.

Por semanas, eu não conseguia pensar em outra coisa. Falar de outra coisa. Ficava mastigando a palavra prescreveu enquanto andava na rua. Até que, em uma madrugada, eu estava conversando com meu marido em casa. E ele me perguntou: "Mas vem cá, qual é a diferença de ela estar presa numa cadeia e estar presa numa casa abandonada? Ela já está presa há mais de 20 anos."

Eu nunca tinha pensado nisso. Então, precisei de dias para elaborar uma resposta. E, como sempre acontece, eu só fui pensar em uma resposta boa semanas depois que a conversa já tinha acabado.

O que eu deveria ter respondido é: "Tem, sim, uma diferença entre estar isolada numa casa abandonada e estar na cadeia". Porque não é a regra do jogo. Muito do que o mundo se tornou nos últimos anos é porque a gente deixou de acreditar nas instituições. A partir do momento que a gente não crê mais na Justiça, na democracia e nos direitos humanos, acabou a cerca invisível que divide a civilização da barbárie. É como se a gente fosse até o contrato social e apagasse nossa assinatura.

VINHETA DE TRANSIÇÃO

Saindo do mundo das ideias e voltando ao mundo real. Nada aconteceu juridicamente com a mulher da casa abandonada, mas em breve deve acontecer algo de prático com ela.

É provável que em breve a mulher não more mais na casa abandonada. Mas o motivo não tem nada a ver com a lei. Lá no segundo episódio, eu tinha dito que a herança da família do pai dela, um médico muito rico, era um ninho de mafagafos, né? Tá na hora de entrar nesse ninho.

Margarida tem duas irmãs com quem compartilha a herança deixada pelos pais. Eu procurei as duas, mas elas não toparam dar entrevista. Quando o pai morreu, em 1998, Margarida se mudou dos Estados Unidos para a casa abandonada. Foi morar com a mãe e nunca mais saiu de lá. Com a morte da mãe, em 2011, as três irmãs herdaram uma porção de imóveis. E a casa abandonada passou a ter três donas. Mas não só ela. O pai e a mãe de Margarida deixaram mais de dez imóveis para as filhas. São dezenas de milhões de reais em herança. Uma herança a que elas não tiveram acesso ainda, porque as três nunca conseguiram se entender. Até que a Justiça intercedeu.

[narração de Magê Flores]

Tendo em vista o elevado grau de litigiosidade que se verifica no feito, a necessidade de finalização do processo que foi distribuído em 03 de dezembro de 1998, bem como a correta administração de bens do espólio nomeio inventariante dativa

Em 2009, a juíza decidiu colocar uma curadora dativa para cuidar do espólio dos pais de Margarida. Isso acontece quando o juiz ou a juíza consideram que a famĩlia não vai conseguir resolver o imbróglio sozinha. É como se fosse uma intervenção do Estado, dizendo "eu vou contratar uma profissional para fazer isso, porque se depender de vocês a coisa não anda."

Não vem ao caso dizer o que são esses problemas, porque eles envolvem o resto da família. Pessoas que não são foragidas da Justiça. Mas basta a gente ler uma linha do processo para ter noção do tanto de treta que nasceu entre essas três irmãs. É o sumário de todas as acusações feitas entre elas. Elas estão na página 325, 361, 367, 368, 370, 371, 373, 375, 377, 451, 454, 513, 516 e 533.

Acontece que essas brigas impedem que os imóveis sejam vendidos, porque todos os herdeiros precisariam assinar um documento concordando com a venda. E, enquanto isso, o patrimônio está gangrenando. Como ninguém paga contas como condomínios e alguns impostos dos imóveis, eles vão virando bolas de neve de dívidas. Então, nos últimos anos, a Justiça começou a autorizar a venda dos bens da família em leilão. Ou, como diz o processo:

[narração de Magê Flores]

É necessário para venda em leilão de bem do espólio para enfrentamento dos impostos devidos há mais de década. Intime-se

Em fevereiro de 2019, foi a leilão um conjunto de salas comerciais na frente do Copan, o prédio mais famoso do centro de São Paulo. Era um conjunto com sete salas, onde funcionava um laboratório de análises clínicas, mais cinco salas que estavam vazias. Somadas, as 12 salas comerciais foram avaliadas em mais de um milhão e 200 mil reais.

Em primeiro de março de 2021, foi autorizada a venda de um apartamento no encontro das avenidas Higienópolis e Angélica. Até novembro de 2020, a dívida do imóvel era de R$ 5.300,82, de condomínios não pagos e de multas. Os apartamentos no mesmo prédio têm de 120 m2 a 300 m2 de área, e são vendidos por mais R$ 1 milhão. Podem custar até R$ 3 milhões.

Não que a herança esteja perto de acabar. Além da Casa Abandonada, Margarida ainda tem uma fatia de dois imóveis na rua Tinhorão, uma viela de Higienópolis, e mais uma fazenda em Itajubá, no interior de Minas Gerais. Ou seja, a mulher da casa abandonada é herdeira de parte de pelo menos uma dúzia de imóveis. Todos esses bens estão parados. Acumulando pó e dívidas. Só que isso pode mudar em breve. Porque a casa abandonada acaba de receber um lance.

VINHETA DE TRANSIÇÃO

Depois de meses insistindo, uma das pessoas envolvidas nesse processo de herança, que tem muitas partes, topa me encontrar, desde que o nome dela não seja divulgado. Ela me recebe munida de uma pasta que é quase tão grossa quanto a Bíblia. É o processo da herança. Em meio a decisões judiciais e avaliações de imóveis, tem uma pastinha com duas imagens impressas por página.

São fotos da casa abandonada por dentro, feitas em 2009, quando a Justiça designou uma advogada para cuidar da herança, porque o enrosco da família era grande demais. E um oficial de Justiça foi autorizado a entrar no casarão, mesmo que Margarida não quisesse. A pessoa me estende as fotos e pergunta: "Você quer ver?".

Eu pego as folhas de papel e é como se eu tivesse passado pelo portão de metal fechado com uma corrente. Em cinco meses de investigação, eu não consegui entrar na casa abandonada. Mas, agora, eu entro. Mesmo que por imagens feitas uns 13 anos atrás. Cada foto mostra um pedaço de um cômodo.

A casa abandonada é menos abandonada do que parece, vista de fora. Ou, pelo menos, era. Essas fotos foram feitas 13 anos atrás, então o tempo pode ter corroído tudo o que está lá dentro. Mas dá um sentimento estranho ver a casa por dentro. É como encontrar alguém que você só conhece da internet, mas que parece um velho conhecido da primeira vez que se tromba em carne e osso.

A primeira foto que vejo é da cozinha, com as prateleiras cheias de comida. Há várias caixas tetrapak de feijão pronto, três potes de achocolatado com um quilo e meio cada um e pelo menos 15 garrafas de um litro e meio de suco de uva, ocupando duas prateleiras de uma estante inteira. Do lado da prateleira fica uma geladeira branca com aparência de nova. Encostadas em outra parede estão mais duas geladeiras, uma verde-água e outra de cor creme, já com manchas de ferrugem.

Depois, chego às imagens de uma sala, coalhada de coisas. Uma impressora ainda na caixa. Um inalador de ar ainda na caixa. Um grampeador ainda na caixa. Calhamaços de papel impressos sobre a escrivaninha, onde também estão um coelho e um urso de pelúcia.

Outra foto mostra um estúdio. Lá, tem um sofá em que o dicionário Houaiss está jogado em meio às cobertas. Encostada no sofá, uma mesa com um código civil ao lado de um código penal, um fichário com papéis rabiscados, como se alguém estivesse estudando direito. Em meio aos códigos jurídicos, se espalha uma planta de plástico, que cobre parte de dois cogumelos de cerâmica e uma joaninha, também de cerâmica.

As fotos dos corredores mostram quadros, muitos quadros. Uma reprodução da Monalisa. Uma pintura das musas gregas inspirando um artista. A imagem de quatro querubins deitados na relva. Um outro quadro tem emoldurado um crucifixo que parece ser feito de marfim. Em cima de um piano de madeira envernizada, há porta-retratos com imagens em preto e branco de noivas.

No meio das fotos, tem uma única imagem em que aparece um ser humano. É Maria de Lourdes Danso, a mãe de Margarida, que morreu em 2011. Ela está na cama do que deve ser um quarto, cercada por almofadas e sacos de supermercado. No colo dela está um cachorro branco, que não é um dos dois que Margarida cria em 2022.

Agora é hora de contar a história surreal de Lourdes no processo. Lembra que no ano 2000 ela foi para os Estados Unidos depor a favor de Renê Bonetti? Pois bem. Renê foi condenado, saiu do tribunal já algemado, direto para a cadeia. E o que aconteceu com a senhora de 85 anos?

Três meses depois do julgamento, em 19 de maio de 2000, o jornal O Globo publicou uma reportagem sobre o desfecho. O título era. "Brasileira de 85 anos é abandonada nos EUA".

[narração de Magê Flores]

"Abandonada pela família no hospital de um subúrbio da capital americana, e sem dinheiro para pagar a conta da internação que já leva várias semanas, Maria de Lourdes Danso Vicente de Azevedo, de 85 anos, deve ser repatriada pelo Consulado do Brasil".

A reportagem contava como Maria de Lourdes tinha ido aos EUA testemunhar a favor do genro, Renê Bonetti, que era acusado de ter mantido uma empregada doméstica em trabalho análogo à escravidão por quase 20 anos. Ela ficou sozinha na casa da família depois do julgamento, caiu e quebrou o quadril. O consulado brasileiro afirma a essa reportagem que tentou entrar em contato com as três filhas de Maria de Lourdes, mas nenhuma se responsabilizou por ir buscar a mãe.

Tem duas frases que ela disse ao jornal O Globo que chamam atenção. A primeira é "Não tenho com o quê pagar o hospital. Estamos de tanga, meu filho. O que eu tinha, eu dei para os pobres lá no Brasil". E a segunda frase que chama atenção é quando ela justifica por que a filha, acusada dos crimes, não foi com ela para os Estados Unidos: "Minha filha Margarida está no Brasil, quase morrendo". Semanas depois de a reportagem ser publicada, Maria de Lourdes foi levada de volta ao país de origem pelo serviço diplomático. E tornou a viver na casa abandonada com a filha. Foi nesse momento que fizeram essa foto, em que Maria está acamada.

Depois que eu vejo as fotos, faço menção de devolver para a pessoa que me mostrou. Mas ela diz: "Quer? Pode ficar." Então, eu levo as imagens comigo.

Eu agradeço e, quando estou prestes a ir embora do escritório, ela me conta uma informação que muda tudo. Tudo. A casa abandonada está prestes a ser vendida. "Já foi", diz a pessoa. No começo de 2022, as irmãs de Margarida aceitaram uma oferta de compra. Uma associação cultural ofereceu R$ 10 milhões pela casa mais o terreno onde ela está. A família toda, menos Margarida, já disse sim. A curadora dativa da herança disse sim. Só falta a juíza do caso autorizar a venda, com ou sem o sim de Margarida.

É provável que em breve a casa abandonada mude de mãos. E que, com o tempo, ela seja reformada. Deixe de ser uma casa abandonada. E, quando a venda for concretizada, a mulher que mora lá dentro vai ser despejada. Por bem ou por força de polícia, garantem as partes envolvidas no processo.

Até lá, eu continuo passando na frente da casa abandonada, quase todos os dias. Uma mansão que já viu dias melhores, e hoje está ruindo. Mas eu nunca mais vejo Margarida.

VINHETA DE TRANSIÇÃO

É fim de tarde de sexta-feira, dia 27 de maio. Mas eu estou longe de sextar. Estou andando pela rua da casa abandonada com a Beatriz Trevisan, produtora desse podcast.

A gente chega à praça Vilaboim. Estamos lá para fazer plantão em frente da casa abandonada até que Margarida apareça. Faz semanas que eu tento falar com ela, mas nunca mais a vi. As janelas estão sempre fechadas. Eu desconfio que ela tenha ficado sabendo que eu estou fazendo uma reportagem sobre a história dela, e por isso tenha ficado ainda mais reclusa.

Então, a tática é vencer pelo cansaço. Uma hora, ela vai ter que sair para alimentar os cachorros, que ficam do lado de fora. Ou ir ao mercado. Ou tentar impedir que uma árvore seja derrubada.

Eu e a Beatriz nos sentamos num banco, a metros da entrada da casa. E a gente passa horas parado esperando. Plantados na frente da árvore que foi plantada onde ficava o pé de ipê podado na antevéspera do Natal.

[Beatriz] Mas é que nem aquela da Marina Sena também, adoro ela, mas não aguentava mais

[Chico] "Por supuesto"?

[Beatriz] É

[Chico] Eu amo

O tédio deixa a gente em banho maria. Precisamos ficar atentos o suficiente para caso ela apareça, então nem pro celular a gente olha muito.

[Chico] É, pois é. Daí eu estou falando com o Bonfá, ir ou não ir. Ele mora ali, ele mora na Santa Efigênia. Na rua. Ele falou assim, ‘vem aqui, deixa o seu celular em casa e a gente vai a pé’, porque vai ser na Praça das Artes, o Getúlio Abelha.

A gente passa horas olhando para a casa abandonada e jogando conversa fora com amigos por áudio de Whatsapp.

[trecho de áudio do Whatsapp sobre a Virada Cultural]

Até que a fome bate.

[Chico] Será que eu vou lá ver a pizza? Cê grita qualquer coisa? Ou me manda mensagem?

E eu atravesso a praça para pegar uma pizza.

[Chico] Eu consigo pegar, pedir pra levar?

[Atendente] Sim.

[Chico] Tem essa promoção de cinquenta reais? Tem de quê? Quero.

[Atendente] Calabresa, marguerita, frango e requeijão e mussarela.

[Chico] Já era.

Eu volto com a pizza. A gente come. E espera. E olha para a casa. E espera. Mas ela não sai mais da casa.

VINHETA DE TRANSIÇÃO

Já é quase meia-noite quando eu vejo uma figura na rua. Não é Margarida. É um homem alto de terno. Um homem que eu já conheço.

[Chico] Deixa eu ir lá ver se é ele.

Sim, é ele. O João.

[Chico] E aí?

[João] Oba!

[Chico] Tudo bem?

[João] Jóia?

[Chico] Lembra de mim, João? Eu sou o Chico.

[João] Cadê o livro?

[Chico] Tô esperando ela. [a Margarida]

O João, que prefere ser identificado só pelo primeiro nome, é segurança da rua onde fica a casa abandonada. E foi uma das dezenas de pessoas que eu entrevistei para essa série. Por mais que a gente ainda não tivesse ouvido a voz dele até aqui, o João deu informações importantes nessa investigação. E ele já me conhece há meses, por mais que insista que eu estou escrevendo um livro, e não fazendo um podcast. Então, não estranha nem um tico me ver ali, parado na calçada no meio da noite.

Em vez disso, vem puxar papo. Ele diz que nunca mais viu a mulher sair da casa abandonada. E dá uma sugestão de como fazer Margarida colocar a cabeça para fora de casa.

[João] Você quer ver ela sair logo? Sabe o que é?

[Chico] Hã?

[João] Você faz barulho pros cachorro latir. Ela pensa que é alguém invadindo.

[Chico] Ah é?

[João] É!

A casa não tem campainha. E eu não quero gritar, porque imagino que a Margarida já saiba que estou atrás de uma entrevista. Então a tática de fazer os cães chamarem sua dona pode funcionar.

Eu atravesso a rua. Vou até o portão.

[som de passos na rua]

Começo a dar batidinhas na placa de metal que cobre todo o portão. E João tinha razão, os cachorros começam a latir imediatamente.

[sons do Chico mexendo no portão da casa abandonada e do cachorro uivando]

Eu espero um pouco e bato no portão de novo.

[Chico mexe no portão de novo, com mais força para fazer mais barulho, e os cachorros latem]

E de novo.

[sons do Chico mexendo no portão da casa abandonada e dos cachorros latindo]

O João assobia do outro lado da rua, avisando que viu algo.

[som do João assobiando]

Eu também vi. O vidro da porta virou um filme do Hitchcock. Porque apareceu o vulto de uma pessoa, olhando de frente para a rua. Não dá para ver o rosto nem nada, só o contorno do corpo de uma pessoa, parada rente à porta.

[sons do Chico mexendo no portão mais uma vez]

Só mora uma pessoa lá dentro. Então, é Margarida que está ali. A sombra fica três ou quatro segundos parada. E, então, sai de frente da porta. Um segundo depois, a luz do térreo se apaga.

[Chico] Apagou a luz?

[Beatriz] Ela é muito esperta.

[Chico] Vambora.

A casa fica em silêncio. E no breu total. Eu ando até o João, que pergunta o que aconteceu.

[Chico] Cê viu?

[João] Ela saiu?

[Chico] Ela apareceu no contraluz, a gente viu ela passando no vidro… Apagou a luz.

Já passou da meia-noite. Não há mais esperança de que ela saia. O João ainda sugere outra tática.

[João] Aonde você ver ela por aí, sabe o que você faz? Você fala assim, que ela é doida por planta, sabe? Você fala assim, ‘ó, moça…’ pra chamar a atenção dela, sabe? ‘Moça, eu queria saber como é o nome dessa planta aqui’.

Mas eu não tenho mais energia para tentar de novo. É quase uma da manhã quando a gente desiste de falar com a mulher da casa abandonada.

VINHETA DE TRANSIÇÃO

No dia seguinte, eu acordo e vou para a praça Vilaboim sem nem tomar café da manhã. Fico mais seis horas parado. Plantado, sentado, sozinho esperando alguém sair da casa. E ninguém sai.

Eu me dou conta que essa tática pode levar semanas, ou meses, até funcionar. Na noite anterior, o João me disse que nunca mais viu Margarida na rua. O único sinal de vida da casa abandonada nos últimos meses foi uma entrega de supermercado. Ou seja, minhas chances são ralas.

Eu apelo para a política da boa vizinhança. Escrevo para uma pessoa que Margarida conhece melhor do que eu, e que ela talvez atenda. A Mari Muradas chega na praça depois do almoço.

[som de beijo]

[Chico] Tudo bem aí?

[Mari] E aí? Nenhum sinal?

[Chico] Nenhum sinal.

Ela topa fazer um experimento. Como Margarida parece estar fugindo de mim, a Mari vai até o portão da casa abandonada tentar conversar com a mulher que mora lá dentro.

Por mais que tenham tido confrontos, as duas não são inimigas. Margarida ainda fala com Mari quando as duas se cruzam. Ainda mais se a doula estiver passeando com a cachorra, Banana.

Caso Margarida saia, eu apareço e digo para ela que estou fazendo uma reportagem sobre a história dela, e peço uma entrevista.

No caminho para a casa, a gente passa pelo edifício Jóia. E o zelador Francisco está no portão. Ele é o Francisco que se considera amigo da Margarida, que apareceu no segundo episódio. E, ao contrário de mim, ele tem visto a vizinha com frequência.

[Francisco zelador] Os abacates estão caindo direto, então ela mudou de canto. Ela fica até às sete, às vezes tudo escuro, ela fica recolhendo o lixo, ela tá lá, só um clarão do computador dela.

Porque do fundo do prédio ele vê a mulher no quintal da casa abandonada. Diz que ela se senta em frente ao computador e passa horas. Mas que ela parou de trafegar na parte da frente do imóvel. Na parte que dá para a rua. Ela se escondeu nos fundos da casa.

[Francisco zelador] E mesmo quando tá frio, ela fica com o computador ali atrás, cobre só as pernas, coloca toca, e fica até as sete horas. Seis, sete horas, toda coberta e com o computador aí.

Francisco diz que vai me mandar uma mensagem de Whatsapp caso veja Margarida de novo. E Mari Muradas e eu vamos para o portão de frente da casa.

A Mari fica de pé na frente da porta. Eu saio do campo de visão.

[Mari Muradas bate palma]

Ela bate palmas.

[Mari Muradas bate no portão]

Ela bate no portão. Os cachorros acordam e vêm para perto da rua.

[sons da Mari Muradas batendo no portão da casa abandonada e dos cachorros latindo]

Mas não acontece nada.

[...]

Mari Muradas então chama Margarida pelo pseudônimo que ela adotou desde que fugiu dos Estados Unidos para o Brasil.

[Mari] Maaari!

Nada. A não ser a raiva cada vez maior dos cachorros.

[som dos cachorros uivando mais alto e forte]

Eu desisto de me esconder. Levanto com o peito contra o portão e começo a chamar também.

[Chico] Ô Dona Maaari!!!!

[sons dos cachorros latindo]

Só o silêncio responde. Depois de meia hora, desistimos.

Eu fico o resto da tarde. Sozinho. Quando o sol está se pondo, uma mulher me vê parado no meio da calçada e pergunta se eu estou bem. Se eu estou perdido. Eu digo que não, estou só esperando uma conhecida.

E eu desisto de novo. Mais um dia que passei inteiro na frente da Casa Abandonada e que não rendeu nada. Nem uma sombra do lado de dentro da sala.

VINHETA DE TRANSIÇÃO

O sol mal nasceu no domingo, dia 29 de maio, e eu estou na rua. Vou passar mais um dia de plantão na porta da casa abandonada. Mas, antes, eu me permito um luxo minúsculo. Levo o jornal até a padaria e me sento para tomar um café enquanto leio.

São sete e pouco da manhã quando meu telefone toca. A tela mostra que é Mari Muradas do outro lado da linha. Eu atendo e ela não diz alô. Só diz uma palavra: corre.

E eu corro. Saio sem pagar minha conta e deixo o jornal para trás.

[sons de passos acelerados e de respiração ofegante]

Levo sete minutos para correr o quilômetro e meio que fica entre a padaria e a casa abandonada. O Google Maps estima que uma pessoa levaria 18 minutos para se deslocar entre esses dois pontos.

Mas a velocidade vem com um preço. Chego à casa botando os bofes para fora. E lá está ela. Margarida. De costas, varrendo o jardim.

Eu a chamo com o fiapo de fôlego que resta.

[Chico] Oi!

[Margarida] Ai que susto!!!

[Chico] Tudo bem?

[Margarida] (risos) Tudo bem e você?

[Chico] Tudo bom. Você se lembra de mim? Eu sou o Francisco.

[Margarida] Lembro. Você está bom, Francisco?

[Chico] Tô e a senhora?

[Margarida] Eu também, obrigada.

[Chico] Que bom.

Ela se vira. O rosto está coberto pela pasta branca.

[Chico] Precisava falar com a senhora.

[Margarida] Oi?

[Chico] Eu precisava falar com a senhora.

[Margarida] Fala ué…

[Chico] A senhora…

[Margarida] É rápido? Porque eu estou correndo aqui que eu tenho que fazer um monte de coisa.

[Chico] Tá.

Ela deu dois passos em direção à entrada. Eu tenho medo que ela vá fechar a porta na minha cara, como fez das últimas vezes que a vi.

[Chico] A senhora pode me dar uma entrevista?

[Margarida] Para o quê?

[Chico] Porque eu sei que a senhora é Margarida Bonetti. Eu fui pros Estados Unidos, eu encontrei o Renê, eu encontrei a … [bipado]. Eu tô fazendo pra Folha de S. Paulo uma reportagem sobre seu caso.

[Margarida] Que horror.

[Chico] É.

[Margarida] Esse é um caso horroroso.

[Chico] É um caso horroroso.

Eu só consigo repetir: é um caso horroroso. Mas, pelo menos, ela admitiu que sabe do que estou falando. Admitiu que é Margarida Bonetti, e não Mari, como se apresenta para os vizinhos.

[Margarida] Mas esse caso aconteceu em 2000!

[Chico] Tá! Eles podem até prescrever.

[Margarida] Já prescreveu esse negócio.

[Chico] Exato. Eles podem até ter prescrito, como prescreveram.

[Margarida] Sim! Mas mesmo que fosse… a parte dele é uma coisa. Agora eu quero fazer o que? Já prescreveu. Então pra que ressuscitar esse assunto?

Eu tento explicar para ela que esse assunto nunca morreu. Que ela nunca respondeu à Justiça, nem foi confrontada com as acusações. Que ela só se escondeu. E um crime não morre de velho. Por isso, não seria ressuscitar um assunto. Seria resgatar um assunto. Mas eu ainda estou exausto dos dias passados em vão na frente da casa e esgotado da corrida até ali.

[Chico] Bom, é isso.

[Margarida] Calma, calma.

[Chico solta uma risadinha]

[Margarida] Cê tá meio, assim, ansioso, né? Com aquele negócio todo, agitado, sei lá.

[Chico] Não, acho que é…

[Margarida] Então, fica tranquilo, vamos com calma.

[Chico] Estamos tranquilos.

Eu tô ansioso e agitado. Faz semanas que eu estou tentando falar com Margarida. E ela está ali, calma, ouvindo que uma pessoa investigou a vida dela. Os crimes que foi acusada de cometer. E ela continua calma quando responde.

[Margarida] Só que não é realmente um crime, inventaram essa história.

E então, ela parece se lembrar de algo.

[Margarida] Foi você que me ligou agora cedo?

[Chico] Foi.

[Margarida] E era por quê?

[Chico] Pra tentar falar com a senhora, porque eu já estou tentando ligar há muito tempo. Eu vim aqui, bati…

[Margarida] Quanto tempo ‘muito tempo’?

[Chico] Ah… três semanas.

Sim, eu tinha ligado para Margarida cedinho. Faz três semanas que eu tentava falar com ela em horários diferentes. Já tinha ligado do meu celular, do celular do meu marido e do da minha mãe. Mas ela nunca atendeu. Nem respondeu os recados.

Mas agora ela está ali. E sabe que vou fazer uma reportagem. E tem de dar uma resposta.

[Chico] É isso que eu queria ouvir da senhora, a sua versão, a senhora pode falar que é uma armação.

[Margarida] Deixa eu explicar pra você.

Mas ela não explica nada. Em vez disso, ela faz uma pergunta. Questiona se quando a gente conversou, na antevéspera do Natal, eu já estava interessado no passado oculto dela.

[Margarida] Deixa eu te fazer uma pergunta. Quando eu te conheci, você me pareceu uma pessoa muito bacana, sobre o assunto da árvore.

[Chico] Uhum.

Ela respira fundo e levanta a mão. Dá a impressão de que vai falar. Margarida nunca deu uma entrevista sobre o caso. A TV Globo tentou falar com ela. A Veja tentou falar com ela. A própria Folha tentou falar com ela.

[Margarida] (suspira) Ai… Deus ajude a gente aqui meu Deus (risada), porque isso aqui é um nojo.

Mas, em vez de começar a me contar a versão dela, Margarida pede um favor.

[Margarida] Eu quero te pedir…. Eu até posso conversar com você sobre essa coisa toda.

[Chico] Tá.

Ela quer se preparar para a entrevista. Se preparar fisicamente, quero dizer.

[Margarida] E aí o que eu quero te perguntar é o seguinte. Como tá incomodando muito, que já faz um tempinho que eu comi coisa doce e tudo… Cê pode esperar só um minutinho pra eu escovar o dente e voltar pra falar com você?

[Chico] Tô aqui.

[Margarida] Por gentileza.

[Chico] Tô aqui, qualquer coisa eu tô na praça, tá?

[Margarida] Não, não! Fica aqui!

Ela fecha a porta. Eu espero por uma hora. E ela não volta.

[Chico] Esperando na frente da casa. Faz quase uma hora que ela entrou, dizendo que ia escovar os dentes

Eu vou embora da casa abandonada. É o fim. Ou, melhor, é um fim, por mais que não seja o fim que eu esperava. Essa mulher tem direito de negar uma entrevista. De fugir de mim. Eu pelo menos consegui chegar até ela e oferecer a oportunidade de dar a versão dela da história. E ela não quis.

Eu volto para casa pensando em como terminar essa série, que foi prevista para ter seis episódios. E a seguinte frase me vem à mente:

"Essa é a história de uma mulher que se esconde numa casa abandonada em um dos bairros mais ricos do Brasil. E que esconde o passado atrás de uma camada de pomada branca no rosto, e também de um nome que não é o dela. Uma história que nunca tinha sido contada, mas que agora existe. Não que isso vá mudar alguma coisa. Mas, pelo menos, a história existe."

A frase quase me satisfaz. Como o final quase me satisfaz. Mas, de novo, a realidade não é um filme de Hollywood. Então, eu sento para escrever o último episódio do podcast.

VINHETA DE TRANSIÇÃO

Mas o que eu pensei ser o fim era só um falso fim. Uma hora depois que eu chego em casa, meu telefone toca. E, do outro lado da linha está Margarida Bonetti, a mulher da casa abandonada, disposta a dar a primeira entrevista da vida dela.

VINHETA DE TRANSIÇÃO

Se você sabe, ou desconfia, que uma pessoa tem seu trabalho explorado. Denuncie. Dá para fazer uma denúncia anônima à Secretaria Especial da Previdência e Trabalho num site. É um formulário simples e rápido. Só precisa do endereço da ocorrência e de um relato breve do que está acontecendo. Assim, fiscais podem ir até o lugar e avaliar a situação. O site para fazer a denúncia, que pode ser anônima, é o seguinte: ipe.sit.trabalho.gov.br. O link também está no texto de descrição desse episódio.

FIM DO EPISÓDIO

Erramos: o texto foi alterado

A cidade de Itajubá fica no interior de Minas Gerais, não em São Paulo, como afirmou versão anterior do roteiro. A informação foi corrigida no texto e no podcast.

Receba notícias da Folha

Cadastre-se e escolha quais newsletters gostaria de receber

Ativar newsletters

Relacionadas