Siga a folha

Descrição de chapéu Folhajus

Rótulos de Ministério Público herói e de político vilão enfraquecem sociedade, diz representante de procuradores

Novo presidente da Associação Nacional de Procuradores da República, Ubiratan Cazetta defende reconstrução de diálogo com Congresso

Continue lendo com acesso ilimitado.
Aproveite esta oferta especial:

Oferta Exclusiva

6 meses por R$ 1,90/mês

SOMENTE ESSA SEMANA

ASSINE A FOLHA

Cancele quando quiser

Notícias no momento em que acontecem, newsletters exclusivas e mais de 200 colunas e blogs.
Apoie o jornalismo profissional.

São Paulo

Contrapor o Ministério Público à classe política, como se o primeiro fosse o mocinho e o segundo o vilão, foi um desacerto da Operação Lava Jato e "coloca dois grandes rótulos que não permitem que você faça a mediação do que é a realidade", avalia o procurador regional da República Ubiratan Cazetta, que presidirá a ANPR (Associação Nacional dos Procuradores da República) até 2023.

Ele defende os resultados da operação, como os valores recuperados e também as provas colhidas durante as investigações, mas reconhece que houve problemas e aponta que agora é o momento de refazer o diálogo com a sociedade civil, com o Congresso e também internamente.

"Você teve, em determinado momento, a Lava Jato com a dimensão muito grande, com os fatos sendo muito discutidos, mas também com um discurso fácil de mocinhos e vilões. Eu não gosto do discurso de mocinhos e vilões porque ele impede o amadurecimento da sociedade", diz Cazetta, 52, em entrevista à Folha.

Para ele, a sequência de grandes operações tornou os políticos mais reativos, o que pode resultar no que considera pautas negativas para o trabalho dos procuradores, como o projeto atual do novo Código de Processo Penal e também de mudanças na composição do CNMP (Conselho Nacional do Ministério Público).​

Cazetta defende ainda a discussão e apresentação de lista tríplice da categoria ao presidente Jair Bolsonaro para a escolha do procurador-geral da República, apesar de o atual ocupante do cargo, Augusto Aras, não ter saído dessa relação e poder ser reconduzido ao posto.

Qual é a prioridade dessa gestão na ANPR? É a de reconstrução dos laços, tanto internos como externos. Temos que refazer o diálogo com a sociedade civil, com o Congresso Nacional e também com o diálogo interno por conta da polarização.

No Congresso estão tramitando muitas matérias que vão de encontro ao interesse de membros do Ministério Público Federal. Por que se chegou a esse clima de hostilidade? Nossa função é ingrata, é sempre a de quem cobra, e quem cobra obviamente gera situações de desconforto. Tanto com a polarização da sociedade como com a sequência de grandes processos como mensalão e Lava Jato, é natural que esse pensamento ocorra e isso é da vida do Ministério Público, nós temos que viver sabendo que estamos diante do confronto.

[Mas] o que ocorre agora é uma confluência de fatos que colocou isso em destaque. Nosso papel é separar os nossos acertos de eventuais erros e evitar que a legislação seja feita de uma forma reativa. Essa é a grande preocupação: cortar legislações reativas e lutar por mudanças que olhem o futuro, mas com equilíbrio.

Qual é a confluência de fatos? Não dá para negar que a a polarização desde a reeleição da Dilma [Rousseff] provocou na sociedade um debate muito grande. Segundo, todo o debate em torno da Lava Jato, tanto seus acertos quanto as críticas, causou uma situação em que você tem uma reação.

Quando você mexe com um processo que discute a grande situação de corrupção dentro do Estado, envolvendo todos os espectros de acusações, é natural que tenha um retorno. Você teve, em determinado momento, a Lava Jato com a dimensão muito grande, com os fatos sendo muito discutidos, mas também com um discurso fácil de mocinhos e vilões. Eu não gosto do discurso de mocinhos e vilões porque ele impede o amadurecimento da sociedade.

Qual foi o principal acerto da Lava Jato e qual foi o principal erro? O principal acerto foi uma estruturação de uma investigação para concatenação de fatos. Não falo só da Lava Jato de Curitiba, mas da investigação como um todo. Não dá para negar a quantidade de recursos que foram recuperados. Não dá para negar a quantidade de provas que foram corretamente amealhadas em torno da investigação. Esse é um grande acerto, você expôs um fato que existe.

Qual o principal desacerto? Está ligado à lógica da política de comunicação disso, que num determinado momento contrapôs o Ministério Público, como sendo o herói, à classe política, como sendo vilã. Isso enfraquece a sociedade, porque você coloca dois grandes rótulos que não permitem que você faça a mediação do que é a realidade. Não há heróis e não há vilões ou Ministério Público versus políticos. O papel do Ministério Público é a defesa da sociedade assim como o papel da política é a defesa da sociedade.

​​O sr. tem dito que vê perigo para a atuação do Ministério Público na proposta do novo Código de Processo Penal, que tramita no Congresso. Por quê? Primeiro, o renascimento da tese que estava na PEC 37, da proibição de investigação pelo Ministério Público. Essa é a mais evidente, o próprio Supremo já tem uma posição consolidada e se está tentando retomar uma discussão de 2013 que parecia estar vencida. A questão da burocratização da investigação também é algo importante, porque em vez de modernizar o processo de investigação, está se criando uma série de instrumentos que burocratizam.

O código não moderniza, não ataca os problemas centrais do nosso sistema e não vai mudar em nada o dado real de que apenas 8% dos homicídios em todo o Brasil são apurados. Se nós queremos reformar uma coisa, tem que reformar para melhorar.

E a proposta do deputado Paulo Teixeira (PT-SP) que modifica a estrutura do CNMP e dá mais espaço ao Legislativo? O CNMP é um órgão de controle externo da atividade administrativa e para verificar se os próprios MPs [Ministérios Públicos] estão aplicando ou não sua atividade correicional. Não há nenhum órgão semelhante, vou pegar o CNJ [Conselho Nacional de Justiça] que nasceu junto, que você cogite que o seu corregedor não seja da própria instituição. Ninguém cogita tirar de ministro do STJ a condição de corregedor nacional da Justiça. O que é que justificaria isso em relação ao Ministério Público a não ser esse incômodo que nós provocamos? Isso não é motivo. Você tem que fortalecer a instituição.

Pela primeira vez em quase 20 anos a ANPR não tem quase nenhuma perspectiva de conseguir emplacar um nome da lista tríplice como PGR. Como o sr. acha que isso vai impactar na forma que a eleição à lista vai ser conduzida? Eu espero que a gente consiga discutir qual é a função da lista. Deixar claro para a sociedade que a lista é um processo democrático, é um processo de transparência e que isso tem uma importância na situação como a nossa. O fato de que no momento não há nenhum prognóstico de que a lista seja observada não significa que ela não deve ser feita, pelo contrário.

Apenas o Ministério Público Federal, ao contrário de outros 30 Ministérios Públicos, não tem esse processo de depuração de nomes e ofertas a quem escolhe, de um número de candidatos que de alguma forma representam, para a classe, um ideal. Para mim é um momento de testar a tese e provar para a sociedade que é um processo democrático, de transparência, e não é para o Ministério Público, é para todos.

Como a ANPR se posiciona em relação à gestão Augusto Aras? A posição da ANPR hoje é sempre de um debate franco e de expor as críticas. Aquilo que nós entendemos que o Ministério Público deixa de cumprir sua função, nós temos que alertar, mas nós temos que respeitar o limite de convencimento do procurador-geral da República. O que nós não podemos deixar é que isso não seja transparente. Eu posso discordar da opinião, eu posso achar que eu faria diferente, mas se isso é feito e se isso é trazido a público para controle pelo Supremo Tribunal Federal, pelo Congresso Nacional, a função está cumprida.

A suspensão do pedido feito pelo presidente do STJ, Humberto Martins, de investigação de procuradores da Lava Jato deve ser levado à Primeira Turma do STF. Como o sr. avalia esse caso? O formato dessa investigação era totalmente equivocado. Você não fazer com que o tribunal que se diz vítima seja titular da investigação. Há um conflito de interesse latente. No caso específico do Ministério Público, se nós estamos discutindo a investigação de membros, nós temos na lei complementar a regra: quem investiga isso é o procurador-geral da República ou quem ele designar. Hoje nós temos um subprocurador-geral da República encarregado dessa investigação, ele vai apurar os fatos e vai apresentar para a sociedade o que ele apurou.

Há uma discussão sobre as provas decorrentes da Spoofing [operação que investigou o hackeamento de mensagens de integrantes da Lava Jato]. Independentemente de que isso hoje atinja membros do Ministério Público ou não, há um conceito do qual nós não podemos separar: prova ilícita é prova ilícita. Ela até pode eventualmente servir para a defesa de alguém para evitar uma condenação, mas nunca, em momento algum, se discutiu no Brasil a possibilidade de que ela servisse para punição.

A Folha revelou que a Polícia Federal pediu ao STF para investigar o ministro Dias Toffoli a partir da delação de Sérgio Cabral. Como o sr. vê essa possibilidade? Eu acho que todos nós, independentemente do cargo que ocupamos, podemos estar submetidos a investigação em foro próprio. O que eu preciso ver é qual é a idoneidade dessa prova inicial para uma investigação. A delação premiada é um instrumento muito importante, a gente não pode banaliza-lo nem pode sacrificá-lo.

Nesse caso específico temos que lembrar que essa delação premiada foi rejeitada [pelo MPF] porque não tinha elementos mínimos. Foi feita diretamente pela Polícia com os mesmos elementos que tinha lá atrás. Se ela tinha elementos razoáveis para iniciar a investigação, ok. A investigação deve ocorrer.

Se não houver indícios mínimos, se eles são muito tênues, aí você tem que ver o obvio: o que eu vou investigar? Se eu não tenho nada para investigar, seja contra um ministro seja contra um cidadão em situação de rua, é um ato ilegal do Estado.

Raio-X

Ubiratan Cazetta, 52
Integrante da Procuradoria Regional da República da 1ª Região, localizada no Distrito Federal, é formado em direito pela USP e mestre em direitos humanos pela UFPA (Universidade Federal do Pará). Ingressou no Ministério Público em 1996 e atuou principalmente em questões relacionadas ao meio ambiente e direitos humanos na região da Amazônia

Receba notícias da Folha

Cadastre-se e escolha quais newsletters gostaria de receber

Ativar newsletters

Relacionadas